Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Por um futuro comum, comecemos em roda
Não há comum possível a não ser que nos neguemos a basear nossa vida e nossa reprodução no sofrimento de outros, a não ser que rechaçamos a visão de um 'nós' separado de um 'eles'
Silvia Federici
Quem foi que disse que nascemos com um instinto natural para a competição? Eu perdi as contas de quantas vezes ouvi o seguinte conselho, principalmente de parentes adultos enquanto crescia: "O ser humano é essencialmente mau e competitivo". Não é o que se vê em uma série de práticas diárias que dão sustentação à vida e que podem ser vistas a um palmo de distância. O belo texto da Paula Rodrigues no Ecoa essa semana, "Eu Sou, Porque Nós Somos", trouxe uma costura brilhante destes exemplos e que ilustram um dos grandes paradoxos brasileiros: em um país onde a desigualdade social é vergonhosa e violenta, as soluções encontradas são coletivas e baseadas na solidariedade e na cooperação mútua.
A realidade produz inovações e formas de existir coletivamente, verdadeiras tecnologias que permitem que a maior parte das pessoas possam se alimentar, trabalhar, se divertir, se relacionar, ou seja, viver. Na maioria das vezes, apesar do Estado. A reportagem me lembrou as palavras da escritora Bianca Santana, proferidas em uma série de vídeos denominada "A Lente do Comum" que produzimos no Instituto Procomum, em parceria com o Sesc: "Mas como é que a gente está viva, e somos 54% da população, se a política de Estado é uma política de extermínio do povo negro? É porque a gente partilha aquilo que a gente tem, mas é uma partilha especialmente do axé, da energia vital, da espiritualidade".
Eram famílias que depositavam suas esperanças nos poderes de Zeca Chapéu Grande, curador de jarê, que vivia para restituir a saúde do corpo e do espírito aos que necessitavam. Desde cedo, havíamos precisado conviver com essa face mágica do nosso pai. Era um pai igual aos outros pais que conhecíamos, mas que tinha sua paternidade ampliada aos aflitos, doentes, necessitados de remédios que não havia nos hospitais e da sabedoria que não havia nos médicos ausentes daquela terra.
Itamar Vieira Junior em "Torto Arado"
Esses laços invisíveis que dão sustentação à vida e sem os quais não conseguiríamos viver também são encontrados em cooperativas, relações de cooperação mútua entre vizinhos, na forma de organização dos acampamentos e assentamentos do Movimento dos Sem-Terra, em giras de terreiro, na forma de compartilhamento de saberes e cuidados de curandeiras e curandeiros, em comunidades cristãs de bairro, nas rodas de coco e outras manifestações de cultura popular, em grupos de pescadores que precisam autogerenciar sua atividade pesqueira, sem os quais não possuem sustento para viver nem para trabalhar, nos povos indígenas que nos ensinam como existir sem destruir - basta olhar para as reservas indígenas e para os modos de vida dos povos originários para aprendermos rapidamente que essa forma extrativista de existir não é uma necessidade, mas uma construção social, política e econômica.
O último dia 25 de julho marcou mais um Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e no manifesto do movimento da Marcha Das Mulheres Negras, lemos: "Reivindicamos o Bem Viver, por ele resgatar as formas ancestrais de gestão do coletivo e do individual, com respeito aos nossos corpos e à natureza. Exigimos outra economia, sustentada nos princípios de solidariedade, reciprocidade, responsabilidade e integralidade".
A esse conjunto de práticas coletivas que dão sustento à vida damos o nome de comum (commons, em inglês, procomun em espanhol). O comum é um sistema social vivo pelo qual as pessoas endereçam problemas compartilhados de maneira auto-organizada. Para alguns, é uma forma de enxergar o mundo, mas também um campo de estudos e pesquisas em diversas áreas como a economia, a política, a filosofia, a ciência política; de formulação de políticas; e de estratégias que promovem transformação das formas com que podemos nos relacionar e nos auto-gerir.
Uma breve googlada e logo nos deparamos com um nome Garrett Hardin e o seu artigo "A Tragédia do Comum". Publicado em 1968 na revista Science o texto é um marco para a pesquisa recente relacionada ao conceito do comum. Basicamente, em seu texto, Hardin, influenciado pela ideia de fim do mundo (mal sabia ele) defendia que nós humanos éramos incapazes de nos autogerirmos e que portanto necessitávamos de instâncias externas de governança. E ele fez isso por meio de uma parábola ficcional na qual defendia que, em um pastoreio comunal, cada pastor iria extrair o máximo que pudesse dos recursos resultando no uso exacerbado e posterior ruína do pasto - a tal tragédia do comum.
As soluções apresentadas por ele passavam portanto por relegar a gestão pela via estatal ou privada. Os grandes mitos da nossa época: o mercado e o estado como entidades salvadoras, idealizadas e intocáveis. Desde então, uma série de pensadoras e pensadores e principalmente praticantes mostram que há muito mais entre o céu e a terra, ou entre o estado e o mercado, do que alguns políticos e economistas conseguiram imaginar.
E se, em vez de salvar o mundo, pudéssemos enfim dedicar nos a acabar com isto?
Denise Ferreira da Silva em "A Dívida Impagável"
A pesquisadora Elinor Ostrom ganhou em 2009 um dos maiores prêmios de economia do mundo, popularmente chamado de Prêmio Nobel de Economia pelo conjunto de sua obra de trinta anos realizando estudos de campo sobre como pequenas comunidades locais gerenciam recursos naturais compartilhados, como pastagens, águas de pesca e florestas. Em suas pesquisas ela evidenciou que quando os recursos naturais são geridos em conjunto por seus usuários, as comunidades acabam por estabelecer suas próprias regras sobre como eles devem ser tratados e usados de maneira econômica e ecologicamente sustentável. Ou seja: a gestão numa perspectiva do comum é não só mais humana, como mais eficiente e sustentável na linha do tempo.
Mais do que isso, Ostrom nos liberta do discurso de que a competição nos é algo natural ou biológico. Nossa capacidade de nos auto-organizarmos, de construirmos soluções para as nossas necessidades, independentemente do Estado ou do mercado podem ser observadas todos os dias em cooperativas de agricultoras, comunidades de software livre, redes de cuidado. A verdade é que nascemos com um impulso natural para ajudar ao próximo e aprimorar nossas formas de existência amadurece em uma forma social estável com inúmeras variações: o comum.
Não há razão para crer que os burocratas e políticos possam resolver os problemas de maneira mais eficiente que as pessoas que os sofrem, que são as principais interessadas em encontrar a melhor solução
Elinor Ostrom
Que escolhas revelam nossas formas de vida? Quando adquirimos a lente do comum, entendemos que tudo está conectado e não há como pensar em uma catástrofe prevista como a atual, sem pensar nas formas como nos relacionamos, a quem delegamos certas decisões, na forma de funcionamento do Estado, em como construímos as cidades, no modelo de negócio do agro, no sistema econômico, no tempo dedicado para as tarefas domésticas e quem é que as realiza, na origem da comida que chega na mesa, desde quem planta, até quem colhe, até quem cozinha. Interdependência e interconexão, duas palavrinhas comumente associadas quando falamos em comum e comunidade.
Na reportagem já supracitada de Paula Rodrigues, determinado momento a historiadora, professora e doutora em história social da cultura Wlamyra R. Albuquerque defende que as soluções para os problemas devem vir dos mais afetados por eles. No Instituto Procomum chamamos isso de inovação cidadã. Quando me deparo com doses de cinismo é nas histórias das pessoas que conheço e na quantidade ilimitada de soluções e inovações que somos capazes de criar que me fortaleço. E são muitas.
No Instituto Procomum trabalhamos para promover e estimular o intercâmbio de diferentes conhecimentos e repertórios como forma de estimular comunidades, redes e soluções. Fazemos isso de várias maneiras, uma delas é nossa escola livre para artistas e empreendedores sociais, a Colaboradora. Um percurso de aprendizagem que tem a colaboração em seu centro. Outro de nossos principais projetos é o nosso laboratório.
O LAB Procomum é um centro cultural mas também uma rede que articula pessoas, iniciativas e infraestruturas no território da Baixada Santista, com o objetivo de criar, instituir e proteger os bens comuns e o bem viver, conectando diferentes fontes de conhecimento. O LAB Procomum também contribui para validar o conhecimento, tecnologias e práticas consolidadas dos diferentes povos que nos constituem - com atenção especial às comunidades subvalorizadas - raça, gênero e classe - estabelecendo um contraponto a outros regimes de verdade forjados pelos atuais hegemônicos e coloniais.
A neutralização das diferenças - em grande parte por meio do extermínio ou da exploração estrutural - foi a forma do domínio europeu sobre a colônia. Para abrir novas possibilidades, a resposta é a afirmação das diferenças nos laboratórios-terreiro, com suas festas alegres e corpos suados que bailam descalços no chão batido das encruzilhadas. Todas e todos juntos desenvolvendo tecnologias e inovações para preservar e instituir o comum
Rodrigo Savazoni em "A Encruzilhada do Comum: Laboratórios Cidadãos em trânsito"
Acreditamos que não existe outra forma produzir outros mundos sem praticar e experimentar num exercício permanente e vigilante de fazer-nos perguntas e desaprender - como qualquer outra coisa que nos habituamos, também nossa forma de enxergar o mundo precisa de deslocamento e prática para ser forjada. Em 2018 lançamos um guia para debater o comum a partir de práticas políticas. O juntxs pelo comum quis se aproximar de candidaturas ao legislativo numa tentativa de fazer o debate da política institucional desde outro lugar.
Também na Holanda há exemplos de que o comum pode servir como lente para a definição de políticas amplas. Recentemente, fui convidada pelos colegas do think tank europeu Commons Network a colaborar com um processo que eles estão desenvolvendo junto ao Estado Holandês. Frente à crise generalizada, o departamento de inovação do Ministério do Bem Estar daquele país, em parceria com a Commons Network está desenvolvendo propostas para um outro contrato social em busca de novas respostas do que entendemos por seguridade social, e por consequência, por Estado.
Entre as propostas sendo desenhadas está por exemplo um outro tipo de contrato (espécie de parceria público-comum) para parcerias iguais entre comunidades ou bairros e governo local; uma proposta de renda garantida e universal destinada a permitir que as pessoas possam passar tempo de cuidado com a vizinhança, pais, filhos, estimulando portanto cooperativas de cuidado e visibilizando o trabalho que já é feito, mas não é referendado nem validado como política de seguridade social.
Enquanto escrevia esse texto, minhas tias lamentavam a construção de uma hidrelétrica no santuário ecológico da região da Mantiqueira. Isso me fez lembrar que os desafios são muitos, não estamos só ganhando, é claro. Mas o comum não é uma panaceia e nem uma utopia e sim uma prática. Comecemos agora a caminhar e comunhar e a fabricar nosso próprio futuro, todos os dias. A cultura brasileira nos ensina: o que espanta miséria é festa! (Beto Sem Braço, sambista, cantor e compositor brasileiro). E festa é movimento, comunhão, roda.
Os seres humanos querem se reunir, conviver, fazer festas, discutir e debater, compartilhar e cooperar. Talvez seja esse o impulso mais poderoso de que dispomos
Chris Carlsson em "Nowtopia-Iniciativas que Estão Construindo o Futuro Hoje"
No Instituto Procomum, gostamos de dizer que o comum é uma lente. Uma forma de estar no mundo. Acreditamos na força das comunidades e na capacidade de criar soluções nas quatro setas que Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino apontam: Educação, Cura, Cotidianos e Criança. Lembro de Kum'tum Akroá-Gamella no mesmo seminário A Lente do Comum, quando ele nos disse: quando você entra no avião, eles te dizem que as saídas de emergência ficam nas portas traseiras. Muitas das respostas estão dadas, construídas por anos de história civilizatória — às vezes basta olhar para trás.
...queria acrescentar que a brincadeira alimenta a nossa alma, mobiliza nossa comunidade, nos faz refletir sobre como queremos nossas cidades. Pra prédios e estacionamentos? Ou pra gente na rua e a gente se misturando nela?
Mãe Beth de Oxum em "Cartografias da Emergência" (e na parede do quintal do Instituto Procomum)
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.
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