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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Esse não é um texto de comoção. É um grito de socorro

Carolina Maria de Jesus, autora de "Quarto de despejo: Diário de uma Favelada" - Divulgação
Carolina Maria de Jesus, autora de "Quarto de despejo: Diário de uma Favelada" Imagem: Divulgação
Keit Lima

21/03/2021 04h00

Esse não é um texto de comoção. É um grito de socorro.

Semana passada me emocionei depois de conversar com uma mãe que me contou chorando que suas filhas não comiam há dois dias. A fome não espera, então, ninguém deveria esperar para colocar comida na mesa. Consegui uma cesta com um dos movimentos que construo, ela agradeceu chorando. Fiquei arrasada, estou há tanto tempo lidando e lutando contra a desigualdade que dificilmente eu choro, mas, eu chorei, desabei.

A fome me faz chorar. Nunca vi tanta fome na periferia como agora, painho me diz que preciso ser mais forte, que preciso sofrer menos nessas situações, talvez ele me diga isso porque ele já enfrentou a fome mais vezes que gostaria.

Mais de um ano depois do início da pandemia no Brasil, já atingimos a marca de quase 300 mil mortes, estamos batendo novos recordes diários, e as filas em leitos de UTI não param de crescer, as pessoas pobres não tiveram o direito ao isolamento, por isso a morte por covid-19 tem cor, classe, renda e escolaridade.

Um estudo da Medida SP mostra que quase 70% das mortes na Grande São Paulo tem classe social determinada, mas isso não é novidade. Da ponte pra cá, sempre lidamos com a negligência e descaso com as nossas vidas, essa sempre foi a nossa realidade. Os mais pobres são mais expostos ao coronavírus porque não têm escolha. Ou morre de covid ou de fome, e isso reflete nos dados. De acordo com indicadores de desenvolvimento da Prefeitura de São Paulo do ano passado, a morte de covid-19 é até 10 vezes maior em bairros com pior condição social.

Quase 40 milhões de pessoas estão vivendo na extrema pobreza no Brasil, segundo dados do Ministério da Cidadania. Essas famílias vivem com renda per capita de até R$ 89 por mês. R$ 89. Um gás em algumas cidades custa R$ 90, o arroz de 5kg está R$ 40, a conta não fecha.

Semana passada foi aprovada a PEC emergencial que não garante um auxílio emergencial decente, em média R$ 250 em 4 meses, mais uma vez quem está pagando a conta desse desgoverno é a população pobre e periférica que está lutando para colocar comida na mesa.

Estamos vivendo um momento desesperador, observo o parlamento brasileiro e me questiono: se o parlamento não consegue socorrer o nosso povo nesta situação, diante dessa barbárie, pra que ele serve? Cadê as promessas que eles fizeram para as pessoas pobres quando eles vieram pedir os nossos votos? E me questiono de novo: Se o parlamento não serve pra fazer políticas públicas para diminuir a desigualdade. Pra que ele serve?

Estamos exaustos. Sem acesso a uma saúde pública de qualidade. Sem políticas públicas que garantam comida nas nossas mesas. Sem o direito de parar um segundo porque temos que cuidar da gente e do outro. Estamos por conta própria.

Não consigo parar de pensar nas palavras de Carolina Maria de Jesus, mulher preta, catadora de papéis, escritora e doutora, quando disse:

"Quem governa o Brasil não sabe o que é a aflição do pobre (...). O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças"

Não queremos palanque sobre as nossas mortes. Não queremos lacração com a nossa fome, mas, queremos seriedade com as nossas dores. Queremos compromisso por uma sociedade mais justa. Muitas mortes poderiam ter sido evitadas com políticas de distribuição de renda que permitiriam o isolamento social para que muitas famílias pudessem ficar em casa, seguros e com comida na mesa.

Essas mortes não são números, são mãe, pais, filhos e amigos. Estamos mais uma vez sentindo de forma profunda o descaso total com as nossas vidas. A negligência do Estado e seu projeto político de exclusão e extermínio dos pobres e periféricos. É um projeto genocida. Esse não é um texto de comoção. É um grito de socorro.