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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Carta para Maria Firmina dos Reis: A Maranhense

Maria Firmina dos Reis - Clara Iwanow - Júlia Vieira/Reprodução.
Maria Firmina dos Reis Imagem: Clara Iwanow - Júlia Vieira/Reprodução.
Diane Pereira Sousa

02/06/2021 06h00

Demorei mais do que o meu tempo habitual para encerrar a leitura do livro "Úrsula", de Maria Firmina dos Reis. Porém a maior demora foi em conhecê-la. E essa realmente me abala. Esta carta é um ato necessário. Ela me posiciona, foi escrita para criar uma ponte. Com ela eu reafirmo que como sociedade precisamos nos unir para combater o racismo, garantir a efetiva visibilidade e participação de mulheres em espaços de desenvolvimento para romper as desigualdades e submissões, e, também lanço voz para que a juventude, em sua travessia, com oportunidade, consiga romper o ciclo da ausência de possibilidades e inspirada em forças e acontecimentos como Maria Firmina, possa sempre chegar até o outro lado.

Mesquinho e humilde livro é este que vos apresento, leitor. Sei que passará entre o indiferentismo glacial de uns e o riso mofador de outros, e ainda assim dou a lume.

Não é a vaidade de adquirir nome que me cega, nem o amor-próprio de autor. Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e a conversação dos homens ilustrados, que aconselham, que discutem e que corrigem, com uma instrução misérrima, apenas conhecendo a língua de seus pais, e pouco lida, o seu cabedal intelectual é quase nulo.

Maria Firmina dos Reis, trecho do livro "Úrsula"

Querida Maria Firmina, os tempos por aqui estão difíceis. Certamente, não como na sua época, mas quando caminhamos acreditando que o dia de amanhã será melhor, nossa expectativa em termos de Brasil é desesperadora. Há esperança, mas a tristeza, a desigualdade, o obscurantismo assolam nossos dias. Estamos aos pouco criando redes de proteção para garantir que nossos terreiros continuem sagrados, felizes e todos que vivem neles permaneçam seguros.

O Maranhão mudou. Por aqui aos poucos as pessoas começam a conhecer teu nome. Você não é mais apenas uma maranhense, você se tornou A MARANHENSE. Você teve uma coragem transformadora. Passei dias presa dentro das primeiras linhas de "Úrsula". Preciso dizer minha querida, que ainda vivemos o mesmo. Teu grito ecoa até aqui. Tranquei-me por três noites em meu quarto, acendi uma lamparina, coloquei um quadro feito exclusivamente para mim do artista maranhense Joe Abreu na frente da minha mesa. Eu preciso dessa combinação, esses sons, eu escrevendo e lendo em voz alta ao mesmo tempo, para me conectar, para imaginar que essa carta chegaria até você em Guimarães.

A noite começa a cair, vejo o céu se auto pintar com cores indecifráveis. Do segundo andar do prédio em que moro, sinto uma ilha silenciosa.

Existem barulhos secretos em cada casa. Sussurros de amor, gemidos entorpecidos que rasgam o tédio do isolamento. E enquanto os corpos dançam a ilha continua em silêncio.

Oito letras formam o status do dia a dia, é profundo, enlouquecedor e a prescrição é um talvez. Da varanda do meu apartamento minha vista alcança 28 janelas, 10 delas não têm grades, estamos presos na estrutura das casas como pássaros na gaiola, só podemos ver-nos tantos poucos metros quadrados. Não sei mais o que é olhar a hora, não me faz falta, o tempo virou meu amigo. As formigas beijam meu chão algumas vezes durante a semana. O silêncio da ilha me fez olhar coisas miúdas, tipo formigas, tomada, sabão, eu ando com olhos de água - sol. Aquele que queima em si mesmo apaga seu próprio fogo. A transgressão desse momento me deixa ainda mais próxima de entender que o que eu quero falar precisa ser melhor do que o silêncio. E melhor que meu silêncio nesse momento é você.

Ali estava você em 1860 lançando um romance que era maior do que aquelas páginas. Certamente naquele momento foi a maior crítica de nosso território sobre a escravização por meio da humanização de personagens escravizados. Você mostrou que éramos humanos. Sua escrita estava além de qualquer outro texto abolicionista. Não te conheci na escola, mas considero que você é leitura obrigatória. Daquelas que emancipa e impulsiona. Você abriu caminhos.

Foi a primeira mulher a ser aprovada em concurso público do Maranhão. A primeira romancista negra do Brasil. De escrita impecável, criou a primeira escola mista. Rompeu os véus de desigualdade de seu tempo. E o que você esperava aconteceu, o sistema do racismo te ocultou. Fez com que o cotidiano te esquecesse. Nos tempos de hoje você teria uma rede de apoio, nós mulheres e nós mulheres pretas estaríamos aqui para você. Estamos avançando. Construindo forças coletivas. Fortalecendo nossos passos. Guimarães, cidade que te acolheu, hoje é um berço cultural, é um motor de resistência, de lá ecoam tambores de liberdade.

Quando alguém fala em seu nome, você é alcance. É aquela mulher que inspira. Aos poucos o teu eco vai se espalhando. Você auscultou em "Úrsula" os que estavam silenciados. E todos os dias nós seguimos rompendo esse silêncio.

Com carinho, respeito e gratidão.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL