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ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

A vida em PB: O poder das imagens e a importância de refletir a diversidade

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

31/07/2021 06h00

Nos primeiros oito anos da minha vida, eu cresci no Brasil sob a imagem de pessoas brancas. O fato de ter a pele cor de chocolate claro fez com que fosse impossível eu me conectar com essa imagem branca. Eu nunca ia ser a menina branca que passava por mim no caminho para sua aula de balé. Eu nunca ia ser a menina branca que estava no programa da Xuxa, batendo palma, rindo e aproveitando a infância. Eu assistia a tudo aquilo de uma TV velha no abrigo. Nós nunca seríamos aquelas crianças brancas no comercial que eu assistia através da janela da loja. Enquanto elas vestiam roupas legais com seus cabelos penteados de um jeito bonito e falavam sobre como adoravam uma marca específica de chocolate, eu e muitos outros estávamos do lado de fora usando apenas nossos shorts sujos. Porque é verdade o que dizem "uma imagem vale mil palavras", e todas as fotos que os meus amigos e eu víamos todos os dias eram de gente branca. Fui adotada por uma família da Suécia aos oito anos e deixei o Brasil com a certeza de que ser branco era ser rico, limpo, respeitado, com status e valor mais altos. Você quer ser branco. Você é beneficiado ao ser branco. Nascer com a pele branca na loteria da vida te dá poder na sociedade. Não daqueles de super-herói. Mas te dá proteção contra balas e pessoas que pensam e supõem coisas negativas sobre você.

Eu não me encaixava na Suécia. Eu tinha vindo de um país em que estava acostumada a ver pessoas que se pareciam comigo, ainda que elas raramente estivessem na TV, nas revistas e tudo mais, e agora só via pessoas brancas. Em todos os lugares. Eu não tinha problema naquela época ou tenho agora de ver pessoas brancas. Essa nunca foi — e continua não sendo — a questão. É um grande problema, no entanto, que eu raramente via pessoas negras ou não brancas. Eu ainda tenho dificuldade para encontrar pessoas que representem todos os outros grupos que não o hegemônico, o que é o "correto". Quando falo isso, acho ainda mais preocupante que sempre alguém (branco) responde que isso não é verdade. Eles mencionam a única atriz ou escritora negra na sala como se eu devesse estar feliz que isso é equidade e considerado justo. Pior ainda, às vezes eu sou a única pessoa negra na sala, e eles me usam e também o meu nome para justificar que não tem nada errado com essa cena: "olha, a Christina está aqui".

Christina Rickardsson - Amanda Pedrosart - Amanda Pedrosart
Imagem: Amanda Pedrosart

Recentemente meu livro "Nunca Deixe de Acreditar" foi publicado na Rússia. Eles trocaram a capa que é uma foto minha para a de uma garota branca na praia. Se meu livro fosse de ficção, eu não ia reclamar tanto. Mas meu livro conta a minha história e os desafios físicos de uma criança pobre vivendo numa caverna, nas ruas, em um abrigo. Conta os desafios psicológicos de ser diferente em um país e cultura diferentes, tentando fazer com que vários mundos, como família, vida e identidade, se encontrassem. Na última vez que olhei no espelho, o tom da minha pele continuava sendo como o de um chocolate. E, na última vez que visitei uma favela ou as ruas, quase todas as crianças empobrecidas eram pretas ou pardas. Tirar a minha cor da capa do livro significa vender mais cópias ao cativar um público branco. Também é uma tentativa de arrancar a nossa dignidade, a nossa voz, a nossa história e a nossa esperança de que também podemos ir além. A verdade é que, se fosse uma autobiografia de uma mulher branca, nenhuma editora no mundo cogitaria mudar a capa para uma garota negra. Então por que fazer isso com uma mulher negra?

No cuidado com os filhos, costuma-se dizer que as crianças não fazem o que você pede que elas façam, mas o que você mostra para elas. O mesmo se aplica para a sociedade e imagens. O que vemos se transforma em realidade e é a base para como tratamos as pessoas que conhecemos e que valor elas vão ter. Qual é o risco de uma única imagem? Uma única história? Bem... o Brasil é um país em que você pode nitidamente ver quais são as consequência de se ter uma única imagem como a dominante. Como uma autora best-seller, eu tive o privilégio de subir na hierarquia e no status social. E eu sempre vejo a mesma coisa aqui no Brasil. Uma sociedade dividida por dinheiro, cor e imagens. Eu via quando tinha oito anos e vejo agora aos 38. E mesmo que as coisas estejam melhores agora, continuo vendo crianças demais serem punidas não apenas por terem nascido em uma família empobrecida como por terem nascido com a cor "errada".

As crianças estão perdendo a chance de terem uma imagem que lhes dê esperança, que diga que também podem se tornar uma médica, um piloto e viajar o mundo se lher derem oportunidade e se acreditarem nelas mesmas. Não seria incrível se uma garotinha com a pele cor de chocolate pudesse ter como referência uma imagem de que ela pode se tornar presidente um dia? O Brasil pode ser o país que muitos estrangeiros sonham em visitar, mas também é o lugar de onde a sua própria população sonha fugir. Nós, Brasil, falhamos em criar uma imagem positiva que incluísse todas e todos. Estamos divididos entre nós e eles, em preto e branco, pobres e ricos, esquerda e direita, pessoas de bem e criminosos e corruptos. Mas isso é algo que podemos mudar.

As imagens importam. Eles mostram quão inclusiva e igualitária é a nossa sociedade. E não só isso, elas mostram às nossas crianças que elas podem ser alguém amanhã. Imagens são histórias sendo contadas, e elas nos dão esperanças, mas também podem com a mesma facilidade arrancá-las de nós. Para que a nossa sociedade esteja refletida nas fotos, temos de ver todas as cores e formas representadas nelas, e nos tocar que as velhas fotos em preto e branco estão ultrapassadas.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL