Topo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Parece conquista, mas não é: reforma política e direitos das mulheres

16.jun.2021 - O presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), durante discussão de projetos de lei - Pablo Valadares/Câmara dos Deputados
16.jun.2021 - O presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), durante discussão de projetos de lei Imagem: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados
Teresa Sacchet, Clara Araújo, Ligia Fabris e Michelle Ferreti

Colaboração para Ecoa

03/08/2021 06h00

Mais uma reforma política está em pauta no Congresso Nacional, com previsão de ser votada já neste mês de agosto. Um dos pontos centrais é a mudança do próprio sistema eleitoral brasileiro, de "proporcional" para "distritão". A reforma tem, ainda, diversas propostas que também afetam diretamente os direitos políticos das mulheres e suas conquistas: as cotas de candidaturas, reserva de assento, financiamento (mínimo e máximo) de campanha e uso de verbas de formação política para outra finalidade.

Algumas dessas propostas buscam alterar a constituição, como nos casos da PEC 125/2011, de iniciativa da Câmara, e da PEC 18/2021, esta última aprovada no Senado e que será votada na Câmara nos primeiros dias da retomada dos trabalhos do Congresso. Outras foram incluídas em Projeto de Lei, como é o caso do PL 1951/2021 que também seguirá para votação na Câmara. A julgar pela forma recorrente em que as mesmas propostas aparecem em formatos diferentes (PECs ou PLs), parece haver certo apoio a essas pautas no Congresso.

Um cenário de tantas mudanças requereria debate cuidadoso com a sociedade. O que se tem visto, porém, é o contrário: pressa, muita pressa. A maneira como esse processo vem sendo conduzido, sobretudo em contexto de pandemia, chama particularmente atenção e não é condizente com mudanças tão substantivas como as que estão sendo propostas e veiculadas sob a (enganosa) narrativa do avanço.

Antes do recesso o clima entre parte dos congressistas era de celebração com a aprovação, pelo Senado Federal (PL 1951/2021), da proposta de criação de cotas de cadeiras para mulheres nos legislativos. O texto, discutido a portas fechadas, parte de reserva inicial de 18% dos assentos nas eleições de 2022, aumentando de forma escalonada até atingir 30% apenas em 2038. É curioso que esse crescimento em ritmo escandalosamente lento e insuficiente em comparação com a média atual, mundial e da América Latina, venha sendo celebrado e utilizado como moeda de troca para justificar retrocessos em direitos políticos conquistados pelas mulheres e pela população negra.

O mesmo PL que propõe 17 anos de prazo para que as mulheres ocupem 30% das cadeiras nos parlamentos, extingue, simultaneamente, a obrigação, conquistada apenas em 2009, de que os partidos apresentem pelo menos 30% de candidatas, fazendo esse debate retroceder aos anos 90. Isso porque, em 1997, a Lei 9.504 estabeleceu que cada partido deveria reservar o mínimo de 30% das vagas para candidaturas de cada sexo. Porém, essa legislação teve poucos avanços práticos, já que predominou a interpretação de que "reservar" não implicaria a obrigatoriedade de "preencher" essas candidaturas. Apenas doze anos depois essa distorção interpretativa foi corrigida e a norma foi modificada: em 2009, com a Lei 12.0348, os partidos passaram a ser obrigados a preencher o percentual mínimo de 30% de mulheres sobre o total de candidatos efetivamente lançados.

No entanto, com o PL 1951/2021, aprovado no Senado, o que era um dever volta a se tornar uma mera recomendação, sem qualquer consequência legal. Diante da inexistência de obrigação de que os partidos lancem mulheres na proporção mínima de 30% em suas chapas, elimina-se qualquer garantia de que haverá candidatas suficientes para ocupar as cadeiras a elas reservadas nos parlamentos. A finalidade primordial das cotas, que é assegurar um equilíbrio mínimo de candidaturas de cada sexo, reduzir barreiras e promover o acesso de mulheres é completamente desmantelada. Será, aqui também, o retorno do termo "reservar" como mera declaração de intenções?

Por fim, o mesmo PL estabelece, na prática, um teto de investimento de recursos para campanhas de mulheres: mesmo que um partido eventualmente tenha mais de 30% de candidatas, os recursos não precisarão mais acompanhar esse percentual; ou seja, partidos que optarem por lançar, por exemplo, 40% de candidatas em suas chapas, estariam autorizados a destinar para as mulheres apenas 30% dos recursos eleitorais disponíveis. Com isso, cai a regra do marco da decisão do STF em 2018 na ADI 5617, que estabeleceu uma necessidade de equivalência entre candidatura e financiamento. Além disso, não há qualquer menção às obrigações instituídas em 2020, após a Consulta nº 0600252-18/DF ao TSE, de que candidatas e candidatos negros teriam direito a, no mínimo, 30% dos recursos públicos de campanha e propaganda política.

Os impactos negativos desse conjunto de medidas apresentadas de forma fragmentada poderão ser incluídos na Constituição Federal, conforme propõe a PEC 18/2021, também aprovada em primeiro turno pelo Senado. Além de reproduzir esses dispositivos do PL 1951/2021, a referida Emenda Constitucional elimina quaisquer punições aos partidos políticos que não aplicarem anualmente pelo menos 5% dos recursos do fundo partidário em programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, considerados obrigatórios pela Lei dos Partidos Políticos. A PEC ainda garante anistia aos partidos políticos que não cumpriram a cota mínima de gênero ou investimentos em candidaturas de pessoas negras.

A reforma eleitoral em discussão apresenta, por fim, uma modificação radical em nosso sistema político. A PEC 125/2011, de relatoria da Deputada Renata Abreu propõe o modelo do "distritão". Nesse sistema, os candidatos eleitos para ocupar as vagas no parlamento seriam aqueles mais bem votados individualmente. Os votos das legendas partidárias não seriam contabilizados. O "distritão" favorece a competição individual, reforça a lógica de candidaturas personalistas com acesso privilegiado a recursos financeiros e com forte exposição midiática, enfraquece a pauta programática dos partidos políticos e esvazia a ideia de projetos construídos coletivamente, fortalecendo a concepção do "cada um por si" no exercício da política. Por todos esses motivos, o modelo foi descartado pela maioria das nações mundiais. Poucos países como Iraque, Emirados Árabes, Afeganistão e Kuwait, utilizam esse modelo.

Com o "distritão", quem já está na política é privilegiado na disputa eleitoral e, por consequência, as oportunidades das mulheres, das pessoas negras, indígenas e de outros grupos sociais ficariam ainda menores. O distritão, na proposta da deputada Renata Abreu, seria uma "primeira etapa" para o "distrital misto". Este modelo mistura sistema eleitoral proporcional com majoritário: parte dos candidatos é eleita por meio de eleições proporcionais e a outra parte por majoritárias. O distrital misto exacerba tanto os problemas encontrados no sistema de representação proporcional com lista aberta, quanto os existentes nos sistemas majoritários, com candidaturas personalistas e de quem tem recursos financeiros, aumentando a dificuldade de mulheres, pessoas negras e outros grupos sociais se elegerem.

A tentativa de realizar às pressas uma reforma política tão profunda com base em métodos excludentes enfraquece os pilares do Estado democrático de direito em nosso país. Ao invés da modificação permanente das regras do jogo, a democracia brasileira precisa de estabilidade institucional e de tempo para aprimoramento das normas existentes. Para isso, é primordial contar com uma justiça eleitoral forte e atuante e com partidos políticos mais transparentes, democráticos e representativos dos diferentes grupos e interesses que compõem a nossa sociedade.

Teresa Sacchet, professora e pesquisadora do PPGNEIM/UFBA
Clara Araújo, professora e pesquisadora do PPCIS/UERJ
Ligia Fabris, professora e pesquisadora da FGV Direito Rio, Fellow do ZiF/Universidade de Bielefeld
Michelle Ferreti, pesquisadora e diretora do Instituto Alziras