Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
O que Ítalo Ferreira e Silvana Lima têm em comum?
Em meio à maior pandemia do século, em um Brasil que enfrenta além da crise sanitária, uma crise política, econômica e institucional, começaram as Olimpíadas depois de um histórico adiamento em 2020. Parecia algo improvável e fora de hora, uma vez que o mundo vive ainda o luto e as consequências da covid-19, mas em poucos dias os jogos tomaram conta das redes e das notícias. Conhecemos novos atletas, relembramos outros e passamos a torcer vibrando por um país com mais possibilidades e sonhos.
As Olimpíadas de Tóquio foram destacadas como os jogos da diversidade e inclusão. A tenista Naomi Osaka, mulher jovem negra, filha de mãe japonesa com pai haitiano, foi escolhida para acender a tocha olímpica por representar o espírito da imagem que os jogos querem passar. Rapidamente, vimos figuras como Douglas Souza, Rayssa Leal, Rebeca Andrade e tantos outros chamaram a atenção do Brasil e do mundo por serem representantes de um país diverso, divertido, resiliente e potente.
Nas baterias finais do surfe, modalidade nova nos Jogos que trouxe forte presença dos atletas brasileiros, tivemos Ítalo Ferreira e Silvana Lima se destacando. Durante suas baterias, ouvimos os comentadores apontando que tanto Ítalo quanto Silvana, tiveram uma trajetória de superação: ele começou a surfar na tampa de isopor do pai pescador em Baía Formosa no Rio Grande do Norte e ela em uma tábua de madeira na Praia do Ronco, no Ceará.
Essas trajetórias de jovens que enfrentam desafios constantes são muito comuns em um Brasil que priva suas juventudes de oportunidades. Ítalo e Silvana tiveram que enfrentar desafios imensos e uma falta sistemática de apoio para chegar onde chegaram, representando seu país. Porém, o sucesso é uma exceção em um oceano de oportunidades que desperdiçamos diariamente, ao não criar oportunidades de desenvolvimento digno para os quase 50 milhões de jovens do nosso país, a nossa maior geração de jovens.
De acordo com a etapa qualitativa da pesquisa "Atlas das Juventudes", que coordenei pelo Em Movimento, uma aliança da sociedade civil pelas juventudes, os jovens sentem a ausência do Estado como provedor de recursos de apoio e suporte: "A gente não deveria precisar lutar pelos direitos, deveríamos só ter os direitos. Mas infelizmente precisamos lutar pelos direitos mais básicos. O mais triste para mim, um homem trans, jovem, negro é que eu luto pelo básico do básico, que é o direito à vida", diz um dos jovens que entrevistamos durante a fase qualitativa, que envolveu imersões etnográficas, entrevistas aprofundadas e um grande questionário online com mais de 2600 respondentes.
Outro jovem entrevistado destaca como a falta de oportunidades faz com que o Brasil desperdice diariamente suas potências: "Sempre falo que todos esses meninos que eu vi crescer, tem a minha idade, estudaram comigo, já morreram. Eles teriam tudo para serem melhores que Neymar, mas não estão mais entre a gente por não ter tido oportunidade. O que difere eles do Neymar é a oportunidade, o que difere um escritor do Emicida foi a oportunidade, o que difere as meninas que eu conheço da Clarice Lispector é oportunidade. Se tivessem outros incentivos, como um projeto que tivesse arte, música... e não só projeto de fazer unha, cortar cabelo, virar sapateiro. Não desmerecendo, mas vocês só querem um projeto para gente ser subalterno. Temos que sair desse lugar e procurar produzir coisas do nosso tamanho, somos grandes e precisamos acreditar nisso."
Em vez de potencializarmos os jovens, estamos violando direitos cotidianamente: no Brasil, em 2017, havia 8,3% de jovens vivendo em situação de extrema pobreza e 30,1% em situação de pobreza, o que equivale a viver com US$ 1,90 e US$ 5,5 por dia respectivamente. O homicídio é a quarta maior causa de morte entre pessoas de 10 a 29 anos no mundo (OMS, 2015). Somos o país com o maior número absoluto de homicídios no mundo, e os jovens são mais de 50% das vítimas. Outro jovem destaca a constante luta pela vida: "Ser um jovem brasileiro é ser um sobrevivente, um grande desafio, pois infelizmente nossa geração vem sendo exterminada pouco a pouco pela violência letal."
Diante desse cenário, não podemos deixar que os jovens se desenvolvam à sua própria sorte. Ítalo e Silvana tiveram que começar com o que tinham disponível, mas não precisaria ter sido assim. Com políticas públicas e programas direcionados, eles poderiam acessar equipamentos, educação e incentivo para continuar no esporte de forma digna. É urgente construir caminhos de desenvolvimento, com manutenção e criação de novas políticas, ampliação de investimentos, atenção para as necessidades de cada perfil dos nossos jovens, em um esforço conjunto entre o poder público, a sociedade civil, o setor privado e os próprios jovens para que tantos outros Ítalos, Silvanas, Rayssas, Rebecas, Emicidas e Clarices possam viver em um país mais justo, igualitário e que preserva e cria caminho para os seus sonhos e o desenvolvimento das suas potências.
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