Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Sobre o tempo e o trabalho
"Índio é preguiçoso", reza a lenda popular calcada numa visão de trabalho tipificada pela revolução industrial que defendia a máxima: "tempo é dinheiro".
Embora seja óbvio o viés etnocêntrico - teoria que preconiza a superioridade de um povo sobre o outro se colocando como referência para tudo - o ocidente construiu um olhar sobre o trabalho colocando-o como o centro da vida, da realização e da dignidade da pessoa humana. E jogou por terra outros pensamentos, outras teorias, outras práticas que não levavam em consideração uma visão de tempo centrada na produção.
Por que dizem que o índio é preguiçoso fazendo as pessoas criarem um estereótipo perigoso de povos tão diversos e distintos entre si?
Para o indígena existem dois tempos: o passado e o presente. O passado é memorial. Serve para nos lembrar quem somos, de onde viemos e para onde caminhamos. Um povo sem memória ancestral é um povo perdido no tempo e no espaço. Não sabe para onde caminha e por isso se preocupa tanto aonde vai chegar. O passado é a ordenação de nosso ser no mundo. É ele que nos obriga a sermos gratos, a cantar e dançar ao Espírito Criador. É ele que nos lembra o tempo todo que somos seres de passagem.
O outro tempo é o presente. Para estes povos o tempo que importa é o presente. Meu avô afirmava sempre: "se o momento atual não fosse bom, não se chamaria presente". Os indígenas são, portanto, seres do presente. Só sabem viver e no presente. "A cada dia basta sua preocupação", disse um certo pajé chamado Jesus para nos lembrar que não precisamos nos preocupar tanto com o que vamos comer ou com o que vamos vestir. "A cada dia basta sua preocupação", Ele dizia.
Viver o presente quer dizer que é preciso significar cada momento. Desde o acordar pela manhã até o momento do sonho tem que ser vivido com intensidade. Isso obriga o indígena a estar inteiro numa ação sem desviar-se dela. Uma caçada será frutífera à medida que o caçador estiver envolvido nela, caso contrário não levará nada para casa.
Viver o presente é olhar para si a cada dia e saber a necessidade daquele momento para o bom andamento da comunidade e fazer o que for bom para ela e não para si. É dar mais atenção ao coletivo do que ao individual. E isso exige um esforço e treinamento do corpo e da mente tão intensos que torna o jovem indígena uma pessoa integral.
O mais importante, no entanto, do que quero dizer é que quem vive o presente não tem necessidade de planejar. Planejamento é a tentativa de congelar os acontecimentos que virão. É ter a ilusão de que se está prevendo o futuro. E o futuro é pura ilusão.
Quando, em tempos antigos, os portugueses tentaram escravizar os indígenas esses não aceitaram aquela imposição. Trabalhar, para o português colonizador, era acumular. Acumulação é uma das dimensões do futuro. Acumula-se, poupa-se, guarda-se com a intenção de utilizar depois, amanhã. Os indígenas não sabem o que é o amanhã. E fugiram da escravidão. Os portugueses inventaram, então, que eles eram preguiçosos demais para aquela nobre função.
E assim ficou.
Tempo e trabalho não são sinônimos. Trabalho e dinheiro também não. Trabalho não dignifica se ele escraviza. Trabalho demais nos dá tempo de menos. E tempo de menos tira da gente a alegria do encontro com os pais, com os filhos, com os amigos. Só o presente é um presente. O futuro é uma promessa que pode nunca chegar. Os indígenas sabem disso. Por isso vivem o momento.
Daí depreende-se também muitas explicações sobre a essência do ser indígena. Quem tem sensibilidade saberá distinguir diferentes pensamentos presentes em nosso mundo e descobrirá que a diversidade nos torna ainda mais coloridos.
E queria dizer que é muito mais difícil viver o presente. Exige muito mais de cada um. O sonho - o futuro - nos desobriga a olhar para o lado e ver a necessidade diária do outro. O futuro nos torna egoístas e mesquinhos. Só o presente nos compromete.
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