Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Se diversidade é uma disputa, as tecnologias sociais estão nos municiando?
Será que estamos colocando bons valores de igualdade, justiça, equidade e inclusão nas empresas erradas? Nossa fé pela transformação nas pessoas erradas?
Se você está no mercado, provavelmente já ouviu falar de Diversidade e Inclusão (D&I), termos guarda-chuva para estratégias de atração e retenção em grandes empresas de mulheres, pessoas LGBTIA+, negras, com deficiência, ou outros grupos sociais. O conceito é cada vez mais pautado depois de anos de articulações e pressões políticas por parte dos grupos, principalmente nos EUA. No Brasil, as primeiras empresas a abordarem o tema são justamente as multinacionais.
Além de ser socialmente impactante, D&I é também uma forma de contribuir para a formação de força de trabalho qualificada, importante no Brasil em especial, um país onde há déficit de profissionais na área de tecnologia.
Os novos comportamentos do trabalho
No contexto atual, com o horizonte do fim da pandemia a nossa frente, a D&I ganha um apelo extra: pessoas brancas de classe média estão em um movimento de largar seus empregos estáveis e bem remunerados com os bolsos cheios após a economia que fizeram em casa durante o isolamento. O Turnover, ou seja, a rotatividade de pessoal nunca esteve tão alta, e diante desse cenário, atrair, formar e incentivar novos talentos é também uma estratégia de sobrevivência, não só ação social.
De primeira, parece a conta perfeita: branco sai, preto entra. Mas essa conta não fecha, pois se diversidade é cada vez mais relevante, é verdade também que temos comprado diversidade no mercado, como um produto de prateleira. Essa empresa X é diversa, então entra no meu carrinho, essa não, então está cancelada, mas sem nos aprofundar no que é verdade ou apenas discurso. Me pergunto: onde está a justiça social nisso?
Diversity Washing e as estruturas que não mudam
Algumas pessoas estão falando sobre "Diversity Washing", ou "lavagem da diversidade", uma alusão ao "green washing", ou seja, muita campanha publicitária com pouca ação de verdade. Nesses casos, grupos marginalizados continuam na mesma posição, e quando avançam são geralmente casos isolados.
Se estamos buscando uma transformação real, então devemos entender a diversidade também como um campo de disputa. A noção de representatividade, de que alguém pode representar algo, é falha e uma armadilha, uma vez que não é suficiente para mudar as estruturas. Não podemos ser históricas únicas.
Em resumo, nada vai mudar se a alta liderança for composta só por pessoas brancas, e arrisco a dizer que essa alta liderança nunca mudará nada, seja lá com qual tipo de pessoa for, se continuamos na estrutura que perpetua as desigualdades. Talvez estejamos esperando ser convidadas para uma festa, mas no final descobrimos que além de dançar, teremos que esfregar o chão sujo. Sejamos um pouco radicais.
Nessa disputa precisamos promover a ginga e as tecnologias que nos uniram até hoje, que criaram e criam grandes lideranças. A meu redor estão várias, como Suzy Santos, que fundou uma casa de acolhimento de travestis em Campinas; ou Vicenta Perrotta, que constrói uma rede de costureiras que transmutam lixo em roupa; ou ainda Dil Vaskes, que no apoio dessa rede encontra caminhos para unir religiosidade e moda em seu próprio empreendimento. Há uma certa habilidade de transformar adversidade em vida entre as brechas, de possibilidade, falando especificamente de travestis, que carregam esse país desigual e violento e estão na base da pirâmide social. É certo que a essa altura do campeonato uma travesti com CLT é sim uma grande revolução, pois essa estabilidade pode nos permitir finalmente sonhar... Mas o jogo não para, também precisamos de mais, de fazer essa grana e essa energia circular entre as nossas.
Tecnologia social, por que não?
Temos que pensar mudanças radicais na forma como produzimos e consumimos, e não numa agenda até 2050, pois temos que considerar seriamente que talvez não haja 2050. E nesse dilema talvez as tecnologias sociais sejam o melhor caminho para reimaginarmos a vida no mundo.
Essas tecnologias compreendem a vida humana em outras dinâmicas e relações, fogem de uma episteme em que o sujeito moderno é o progresso de séculos de iluminação da humanidade e a única verdade, pois no fim estamos descobrindo que essa "verdade" vem com os oceanos cheios de plástico e um histórico de genocídio.
A tecnologia social deve ser "liberadora do potencial e criatividade do produtor direto, capaz de viabilizar economicamente os empreendimentos, autogestionários e as pequenas empresas" (Renato Dagnino), e pessoas tradicionais nessa Terra, mas apagados historicamente, têm muitas respostas e soluções, sejam os povos originários das Américas, ou das pessoas fruto do sequestro africano.
Nós temos que correr para viver e sobreviver, mas não podemos correr para assumir a liderança das mesmas estruturas que nos matam, assim só seremos chefas ruins reproduzindo relações de poder abusivas. Usando um jargão startupeiro: temos que escalar as iniciativas que não destroem o planeta nem nossas vidas.
Enquanto trabalhamos e construímos o mundo à nossa volta, precisamos investir em soluções que não nos deixem numa lógica de produção a qualquer custo e de positividade tóxica. Faz parte do processo nos reconhecer num lugar de empreendedoras, mas não num discurso liberal, e sim hackers da precariedade, nos fortalecer em comunidade, sem necessariamente "ocupar" as estruturas que foram feitas para nos excluir.
Por fim, também faz parte do nosso trabalho aproveitar a vida, e não nos matar para sustentar o capitalismo tardio predatório, porque ele não tem sustento. Por enquanto, estamos em uma encruzilhada distópica onde soluções existem e podem nos salvar, ou no fim entraremos em colapso e os bilionários irão povoar Marte mesmo. Redes criativas, pretas, trans, radicais, já se atentaram a isso e preparam a fuga por seus próprios labirintos.
"Eu me lembro de trabalhar como se estivesse correndo. Correndo rumo a uma ilusão de conforto e estabilidade, a tentar salvar-me de coisas das quais não posso ser salva. e eu também lembro de trabalhar como se eu pudesse alcançar a velocidade necessária para cruzar pontes ainda não erguidas; como se, correndo, eu pudesse existir entre mundos assimétricos."
Jota Mombaça, em "Não vão nos matar agora"
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