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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A população em situação de rua mudou. As políticas precisam mudar também

Fila para receber marmitas na sede do Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo - Reprodução/Instagram @movimentoestadualdapopderua
Fila para receber marmitas na sede do Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo Imagem: Reprodução/Instagram @movimentoestadualdapopderua
Vinícius Lima

30/01/2022 06h00

Meu trabalho é ouvir histórias, mas não qualquer história. Histórias de pessoas que ninguém vê, histórias das pessoas em situação de rua. Porém, muita coisa mudou. A rua está muito diferente, se compararmos hoje com cinco anos atrás.

Desde que o Brasil foi surpreendido com a pandemia do novo coronavírus, eu andei pelas ruas escutando a população que está na calçada e uma coisa me surpreendeu: muita gente dizia que estava naquela situação fazia dias, semanas, meses, um ano, um ano e meio. Ou seja, da pandemia para cá.

Esse aumento é visível. Hoje, em São Paulo, ninguém consegue andar um quarteirão sem notar que tem alguém na calçada, procurando comida no lixo ou parando quem passa para pedir ajuda. Só que o que poucos perceberam é que o perfil dessa população também se transformou com o tempo: aumentou o número de mulheres, famílias e de adolescentes e crianças em situação de rua.

Segundo o último censo municipal, o público cresceu 31% de 2019 para cá. O que mais choca é que nos últimos 5 anos esse número dobrou. Movimentos sociais e organizações da sociedade civil questionam a metodologia apontando subnotificações, o que infelizmente sempre existiu. Mas esse não é o tema deste texto. A pergunta que fica é: a cidade está preparada para lidar com esse novo problema? As novas políticas públicas vão conseguir atender os perfis da população de rua que o censo nos revelou?

NOVOS TEMPOS, NOVAS SOLUÇÕES

As políticas públicas que existem hoje não fazem isso. Se pegarmos um Centro Temporário de Acolhida como exemplo, eles ignoram as particularidades do povo de rua e, muitas vezes, pedem que abram mão dos seus parceiros, da sua carroça ou do seu pet. Esquecem que tudo isso faz parte da identidade daquela pessoa acolhida.

Em uma conversa recente com o atual secretário municipal de assistência e desenvolvimento social, Carlos Bezerra, uma fala me marcou bastante. Ele me disse sobre não querer multiplicar velhas respostas e antigos formatos, mas criar novas soluções para um novo problema. Enquanto o número de pessoas em situação de rua só cresce, a proposta não pode ser os modelos tradicionais de albergues, pois já vimos os resultados de colocar uma cama ao lado da outra, um horário restrito para entrar e sair e separar os agrupamentos já existentes.

Como resposta a essa nova face familiar que a rua ganha, a Prefeitura de São Paulo propôs o programa Reencontro, que prevê moradias transitórias e ações intersecretariais imediatas capazes de acolher, a curto e médio prazos, as milhares de pessoas que foram para as ruas desde o início da pandemia, segundo as próprias redes sociais do secretário. Isso me parece o caminho certo: pensar novas formas de morar, de habitar, pois o modelo que temos hoje de acolhimento apenas despersonaliza e domestica os acolhidos.

Hoje, a cidade tem repúblicas e também possui um modelo de locação social para a população de rua, um prédio na rua Asdrúbal do Nascimento, em que os beneficiados podem morar, de tal maneira que sua autonomia, sua autoestima e suas responsabilidades são resgatadas e seus vínculos preservados. Quem convive com a rua sempre bate na tecla de que não basta apenas uma cama para dormir, mas privacidade, um quarto para poder retomar sua autoimagem e recomeçar.

COMO PROTEGER MULHERES E CRIANÇAS

Certa vez ouvi numa história do SP Invisível uma mulher que me disse: "Já pensou que a lei Maria da Penha não funciona para a mulher que está em situação de rua, uma vez que não conseguimos criar uma distância dessa vítima e do seu agressor?".

Como a cidade vai lidar com essa mulher que já sofria com a violência doméstica e nas ruas lida com mais violência? Ou os adolescentes, como podemos pensar algum formato de reinserção ou até inserção nas escolas de crianças e adolescentes que chegaram nas ruas recentemente? Por fim, as famílias inteiras, como uma mãe pode aproveitar a primeira infância do seu filho ou sua filha de maneira saudável, sendo que ela está na rua? Como os pais conseguem um emprego, sem um comprovante de residência?

Todas essas respostas estão nas moradias. Porém, não o nosso formato antigo de albergue, isso já vimos que não funciona. O albergue ainda deixa a mulher exposta à violência, aprisiona o adolescente e não o incentiva à criação, nem funciona como um ambiente familiar.

O Censo nos mostra que precisamos de novas formas de morar e de viver. Só assim, numa cama, num quarto, num lugar para descansar com 4 paredes e privacidade, as pessoas em situação de rua poderão recomeçar suas vidas e participar da sociedade.