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OPINIÃO

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Ministério da Economia quer legalizar terras griladas na BR-319

Caminhão carrega toras de madeira pelo "trecho do meio", parte sem asfalto da BR-319, no Amazonas - Caio Guatelli/UOL
Caminhão carrega toras de madeira pelo "trecho do meio", parte sem asfalto da BR-319, no Amazonas Imagem: Caio Guatelli/UOL

Lucas Ferrante*

07/10/2022 06h00

Reuniões realizadas pelo Ministério da Economia desde janeiro de 2022 visaram favorecer a ocupação de áreas de floresta cortadas pela rodovia BR-319.

A rodovia BR-319 é uma das maiores rodovias federais planejadas do Brasil, que liga Porto Velho, capital de Rondônia, no arco do desmatamento amazônico, a Manaus, capital do Amazonas.

A rodovia foi construída na década de 1970 durante a ditadura militar, e com seus 850 km corta grande parte do estado do Amazonas, incluindo um dos blocos mais conservados de floresta, perpassando por uma área que abriga 63 terras indígenas.

A rodovia foi abandonada durante a década de 1980 pela falta de trafegabilidade e sua inviabilidade econômica, entretanto, uma promessa de repavimentação em 2015 e posteriormente tentativas do governo Bolsonaro em pavimentar a rodovia, sem a consulta dos povos indígenas afetados pelo empreendimento, além da ausência da realização dos estudos ambientais adequados, fez com o desmatamento explodisse na região.

Para o estado do Amazonas, o transporte via cabotagem, ou seja, através de balsas e barcaças pelo rio Madeira é mais eficiente, chegando a custar um terço do transporte terrestre pela rodovia BR-319, o que demonstra a inviabilidade econômica do empreendimento.

Estudos independentes também demostraram que para cada real que o governo federal coloca na rodovia, o retorno é de apenas R$ 0,33, o que faz levantarmos as perguntas: A quem a pavimentação da rodovia BR-319 atende? A quem o Ministério da Economia quer favorecer?

A resposta é: para grileiros e madeireiros ilegais que estão de olho em abrir este enorme bloco de floresta ao desmatamento e, posteriormente, substituir a floresta nativa pela pecuária.

Um estudo publicado na revista Nature no início deste ano demonstrou que um novo ciclo de desmatamento se forma na região, onde estas áreas passaram a ser visadas por pecuaristas.

Em outro estudo publicado por pesquisadores do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), foi demonstrado que, em 2020, o desmatamento apenas no trecho do meio da rodovia atingiu mais de 8 mil hectares.

O mesmo estudo demonstrou um processo de grilagem destas áreas, com conivência de órgãos de fiscalização como Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e Ipaam (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas), que deveriam evitar este tipo de ocupação, o que demonstra a total falta de governança territorial na área.

De acordo com o estudo, o Ipaam concedeu licenças de manejo florestal para áreas sem a titulação, o que viola a legislação brasileira.

Posteriormente, os grileiros utilizavam a própria licença de manejo florestal para requisitar uma titulação junto ao Incra, argumentando que a área já estava ocupada e vinha sendo explorada legalmente. Um dos planos do Ministério da Economia para a área é fomentar o aumento de concessões florestais, o que tem preocupado os especialistas e pesquisadores.

Estudos científicos ainda têm apontado que o desmatamento na região cresce em uma taxa 2.5 vezes maior quando comparadas com áreas de outras partes da Amazônia, demonstrando que a promessa de pavimentação da rodovia é a responsável pelo desmatamento.

A revista científica Science, um dos maiores periódicos científicos do mundo, classificou a rodovia BR-319 como um eixo para expansão do desmatamento na Amazônia e colapso do bioma, afetando diretamente o fenômeno conhecido como "Rios voadores amazônicos", responsável pelo transporte de vapor d'água da região Amazônica para as regiões Sul e Sudeste do Brasil, sendo fundamental para o abastecimento humano e para a agricultura destas áreas.

O Observatório da Rodovia BR-319, grupo de instituições que monitora a rodovia, chegou a publicar uma nota técnica este ano apontando que apenas para quatro municípios cortados pela rodovia, Canutama, Humaitá, Manicoré e Tapauá, foram abertos uma rede de mais de 4.752 quilômetros de ramais ilegais, dando acesso a áreas antes intocadas de floresta a desmatadores e grileiros de terras.

Um estudo cientifico de pesquisadores do Inpa apontou que grileiros têm vendido terras por R$ 3 mil o hectare às margens da rodovia BR-319, e a menos de 20 reais o hectare para áreas dentro da malha fundiária, onde o desmatamento fica por conta do ocupante da área.

Preocupantemente, em vez de adotar iniciativas extensivas para combate ao desmatamento, grilagem de terras e abertura de ramais ilegais ao longo da Rodovia BR-319, o Ministério da Economia tem defendido a entrega e legalização de terras em seis glebas ao longo da rodovia.

Em reunião promovida pelo Ministério da Economia em 1 de julho deste ano, a Consultora Legislativa na Câmara dos Deputados e antes Secretária de apoio ao licenciamento ambiental e à desapropriação, Rose Hofmann, realizou uma apresentação intitulada "Atuação do poder legislativo sobre a gestão territorial no entorno da rodovia BR-319".

A apresentação apontou a existência de três comissões permanentes para favorecer a ocupação da região amazônica cortada pela rodovia BR-319. Em 2017, quando era diretora de licenciamento do Ibama, Rose Hofmann foi denunciada por servidores do IBAMA que haviam sido afastados, onde de acordo com estes servidores a direção atendeu a pressões do setor privado.

Como coordenador de alguns dos estudos sobre o aumento de grilagem de terras ao longo da rodovia BR-319, por duas vezes tentei alertar nas reuniões promovidas pelo Ministério da Economia, onde fui censurado, que os estudos de impacto ambiental da rodovia eram deficitários e que a ausência da consulta dos povos indígenas era responsável pela expansão do desmatamento.

Preocupantemente, o responsável por gerir as reuniões promovidas pelo Ministério da Economia, Alex Garcia de Almeida, Secretário de Apoio ao Licenciamento Ambiental e à Desapropriação, interrompeu e cerceou a fala de todos que realizaram estas denúncias, argumentando que IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e FUNAI (Fundação Nacional do Índio) estavam fazendo um trabalho "técnico".

Isso foi questionado até mesmo pelo procurador do Ministério Público Federal, Fernando Merloto, que apontou contrariamente aos técnicos da FUNAI, que a consulta dos povos indígenas não foi realizada.

Após as denúncias ocorridas durante as reuniões de que as áreas que o Ministério da Economia pretendia legalizar eram áreas de grilagem, estudos científicos que comprovam os fatos foram enviados ao Secretário de Apoio ao Licenciamento Ambiental e à Desapropriação, Alex Garcia de Almeida.

Em 30 de agosto Alex enviou por e-mail um comunicando que as reuniões promovidas pelo Ministério da Economia foram encerradas, sob a justificativa da proximidade com as eleições. Esta ação pode ser vista como uma tentativa de jogar para baixo do tapete as denúncias e violações de direitos indígenas cometidas pelo próprio Ministério da Economia antes das eleições.

Enquanto isso, as legalizações de terras griladas avançam para atender o eleitorado criminoso do presidente Bolsonaro, grileiros e madeireiros. A "boiada" está passando e tocada agora também pelo Ministério da Economia!

*Lucas Ferrante é biólogo, formado pela Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL), mestre e doutor em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Tem pesquisado os efeitos negativos da rodovia BR-319 e grilagem de terras na área de influência da rodovia nos últimos 8 anos.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL