Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Qatar importou toneladas de areia para sediar a Copa em pleno deserto
O contraste de longas dunas de areia com o mar cristalino forma praias paradisíacas, e ilhas artificiais repletas de iates compõem o cenário junto a bairros luxuosos construídos rapidamente em um processo acelerado para receber a Copa do Mundo FIFA.
Primeiro país do Oriente Médio a receber o evento mundial, que começou ontem (20), o Qatar precisou importar areia para colocar as suas cidades e o maior evento esportivo do planeta de pé. Isso mesmo que você leu: importar areia, em pleno deserto.
Pode parecer bobo, mas a areia, que nada mais é do que rocha fragmentada, é uma matéria-prima essencial em nossa vida. Até mesmo os chips de silício dentro dos telefones e computadores são feitos com esse que é o segundo recurso natural mais extraído do mundo, atrás apenas da água. E mais: o mundo enfrenta uma escassez de areia.
Como é possível? Como podemos ficar sem uma substância encontrada em todos os cantos?
A resposta depende de duas coisas: quantidade e qualidade. Por ano, são usadas 50 bilhões de toneladas de "agregado", o termo técnico da indústria para areia e cascalho, que vai no cimento. E nem todos os tipos de areia têm a qualidade necessária para o uso industrial.
Para ser útil para a construção, os grãos precisam ter uma certa angulosidade, como são aqueles encontrados em leitos e margens de rios e em alguns locais da costa. Os grãos encontrados no deserto, por exemplo, costumam estar muito desgastados. É o que faz com que um país como o Qatar, com enormes áreas desérticas, tenha que importar areia.
Enquanto o petróleo é um recurso estratégico e os recursos hídricos são cada vez mais o centro da competição geopolítica, o processo de construção do Qatar deu destaque a esse material que tanto usamos, porém esquecemos. Mas essa não foi a primeira vez.
A areia aparece, por exemplo, como um importante recurso da longa e cara lista de materiais que os militares americanos tiveram que enviar para o Iraque durante a guerra - inesperado, no mínimo, para qualquer telespectador que já tenha assistido filmes norte-americano do país arenoso e hostil.
A competição por areia vem crescendo tanto que em vários lugares da América Latina e de África, grupos criminosos entraram no comércio, retirando areia em megatoneladas para vender no mercado ilegal e danificando paisagens naturais. O relatório Modern Slavery in the Construction Industry também relaciona a atividade ao trabalho forçado de crianças na extração do material.
No fim, esses grupos se safam de tudo isso da mesma forma que o crime organizado faz em todos os lugares, com a vantagem adicional de que praticamente não há nenhuma preocupação com a procedência da areia - afinal, quem iria se importar com um recurso aparentemente tão abundante?
Mas o problema é tão grande quanto nossos desertos. Segundo o pesquisador Luis Fernando Ramadon, com base no relatório Transnational Crime and the Developing World e no relatório da UNEP-INTERPOL - Rise of Environmental Crime, a extração ilegal de areia seria o terceiro crime de maior faturamento em escala mundial, com valores entre US$ 199,98 bilhões e US$ 349,98 bilhões.
Alheios a esse problema, usamos cada vez mais areia, não só para construções mas também para combater processos erosivos de praias de todo o mundo e até para literalmente criar ilhas - exemplo disso é a famosa Pearl Island, criada pelo homem no Qatar, que aparece na lista de "atrações imperdíveis" do país sede da Copa.
A competição pelo recurso é mais um exemplo de como muitas vezes, para fomentar o luxo de poucos, arcamos com impactos socioambientais em grande escala sem pensar nos danos reais desse processo.
Entre a Copa e a COP (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas), que também ocorre nesse mês de novembro, precisamos, e merecemos, torcer e nos unir, ter aquele gostinho do nosso poder juntos e até valorizar mais a nossa cervejinha com os pés na areia no verão. Somar forças para um novo ano que já vem aí, e lembrar que somos a última geração que pode frear as mudanças climáticas.
*Beatriz Mattiuzzo é oceanógrafa, mestranda em Práticas de Desenvolvimento Sustentável, instrutora de mergulho e cofundadora da Marulho, negócio socioambiental que intercepta redes de pesca junto a pescadores locais em Angra dos Reis. A Marulho foi a vencedora da categoria Empresas que Mudam do Prêmio Ecoa.
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