Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Não existe inclusão sem acessibilidade; governo Lula ainda derrapa no tema
Já no instante da posse do presidente Lula, enquanto o influencer Ivan Baron, representando a população com deficiência, exibia mensagem contra o capacitismo bordada na própria roupa, alguns direitos de acesso à informação estavam sendo violados.
Milhões de pessoas com deficiência não puderam participar da cerimônia de posse do presidente Lula, presencial ou virtualmente, pela falta de medidas básicas de acessibilidade comunicacional - legenda, audiodescrição e linguagem simples. Havia intérpretes de Libras, mas isso é insuficiente, ainda que necessário.
Se a cena da rampa, por seu propósito, gerou muita comoção, como transmutar toda esta emoção em combustível gerador de direitos? Toda comoção deveria gerar uma ação imediata. Nem sempre acontece.
Há um risco de estagnação ou acomodação sempre que alguém ou grupos se emocionam, choram e se arrepiam. A secularidade prova que as toneladas de lágrimas, verdadeiras, já derramadas pela humanidade diante de um ato doloroso de discriminação explícita não têm, necessariamente, efeito transformador. E até funcionam ao contrário. Acontece quando se fica muito feliz com a própria capacidade de se indignar, e se perde a urgência da luta.
Existiam sinais de que a posse seria assim. A campanha do presidente Lula ocorreu sem oferta de Libras e legenda, audiodescrição e linguagem simples nos eventos presenciais e online. A escassa ou nula acessibilidade comunicacional se manteve nas reuniões dos subgrupos temáticos, incluindo o de pessoas com deficiência - os subgrupos compunham os grupos técnicos da Comissão de Transição Governamental.
Importante ratificar que nada disso interferiu na tomada de uma das decisões mais irretocáveis deste novo governo quando, já no dia 1 de janeiro, foi revogado o chamado "Decreto da Exclusão", de 2020, que tentou destruir a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva, de 2008. Entretanto, há muito mais a providenciar, além de revogar.
Praticar a inclusão de pessoas com deficiência inclui, necessariamente, a plena e diversificada oferta de comunicação acessível. Não se trata aqui, aliás, de nenhuma novidade. É um padrão que já foi atingido em alguns momentos e iniciativas do passado. Foi assim em muitas das conferências nacionais que marcaram até hoje os governos de Lula e Dilma.
Oferecer Libras virou uma prática no governo passado. Boa parte da mídia, por exemplo, achou que isso já era o máximo. Mas não. Libras sem legenda é sinônimo de pouco, porque exclui pessoas com deficiência auditiva que não se utilizam da Língua de sinais e dependem da legenda para saber o que está sendo dito, o que fica ainda mais completo quando se oferta a LSE, uma legenda que também detalha sons e outros aspectos não captados por pessoas ensurdecidas parcial ou totalmente. Oferecer apenas Libras - eu reforço - é dar preferência a um grupo de pessoas surdas em detrimento de outro, promovendo, claro, exclusão.
Na recente posse de ministros, em Brasília, outros tipos de acessibilidade também foram ignoradas: não havia rampas para os palcos, assento reservado para pessoas com mobilidade reduzida, idosas ou com deficiência, e filas preferenciais. Faltou, além da audiodescrição, indispensável para pessoas cegas, linguagem simples para quem vive com deficiência intelectual ou psicossocial, têm baixo letramento ou transtornos do espectro autista. Esses são grupos que não conseguiram acompanhar com autonomia os eventos da posse.
Nos mandatos anteriores de Lula não era assim. Foi o presidente eleito quem, em 2007, encaminhou ao Congresso Nacional mensagem presidencial propondo a ratificação da Convenção da ONU sobre Pessoas com Deficiência com valor de Constituição, em um projeto liderado pela médica Izabel Maior, então responsável pela Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência.
Em 2009, de fato, a Convenção se tornou, após aprovação do Congresso, e promulgação presidencial, o primeiro tratado de Direitos Humanos a ter status de Constituição no Brasil. Depois, em 2015, foi promulgada, com a relatoria da então deputada Mara Gabrilli, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. A sociedade civil participou ativamente dos dois processos.
É preciso oferecer mais do que representação para a população com deficiência, principalmente aquela que mora em regiões nas quais lhes é negado acesso a direitos de toda natureza, da conectividade à saúde.
O governo de partida ainda não nos tranquilizou. Duas mensagens são preocupantes: a falta de acessibilidade comunicacional nas cerimônias de posse e que continua precária desde então; e o corte drástico da Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, que hoje, me parece, é ainda menor do que aquela de 2009, quando foi criada por Lula.
Aguardamos, então, presidente, que seu terceiro mandato seja 100 por cento icônico no que se refere à comunicação acessível e inclusiva, beneficiando diretamente, também, crianças, pessoas idosas, analfabetas, com depressão, que ainda não conseguiram acessar cirurgias de catarata pelo SUS, baixo letramento e pouco conhecimento do português, como imigrantes e refugiadas, entre tantos outros grupos impedidos de participar da vida em sociedade por barreiras presenciais e virtuais de comunicação.
Pessoas com deficiência são a maior minoria do planeta: mais de um bilhão de seres humanos, segundo a ONU. Cerca de 80% desta população vivem nas regiões mais empobrecidas dos países em desenvolvimento, como o Brasil. E, consequentemente, em sua maioria, são pessoas negras - pardas e pretas. Há, portanto, uma relação inequívoca entre pobreza, deficiência e raça, que deve ser estruturante na conceção e implementação de políticas públicas.
Na prática, porém, a própria ONU ignora os dados que divulga. A OMS fez pronunciamentos sobre a Covid-19 na pandemia sem oferecer qualquer acessibilidade, como se as vidas de pessoas com deficiência valessem menos. Como se "tudo bem" ficarem sem informações.
Não existe inclusão sem acessibilidade. Não existe inclusão sem democracia. Não existe democracia sem participação. Não existe participação sem plena acessibilidade comunicacional. Este pensamento, posto em prática, irá nos impulsionar também na direção da busca de soluções para a desigualdade social e o racismo estrutural.
A oferta de plena acessibilidade comunicacional não é opcional ou adiável - principalmente para um governo que pautou toda a sua campanha no combate a desigualdades.
*Claudia Werneck é idealizadora da Escola de Gente, ativista brasileira em direitos humanos, pioneira na disseminação do conceito de sociedade inclusiva (ONU) na América Latina. Jornalista formada pela UFRJ com especialização em Comunicação e Saúde pela Fiocruz, é autora de 14 livros sobre inclusão (WVA) em português, espanhol e inglês, com mais de 400 mil livros vendidos.
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