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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Caso Americanas expõe falência de máquina de moer gente pra ganhar dinheiro

Fachada da Americanas - Reprodução
Fachada da Americanas Imagem: Reprodução

João Paulo Pacifico*

Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP)

27/01/2023 06h00

Imagine um mundo em que as pessoas fazem tudo por dinheiro. Um mundo em que quem tem muitos recursos explora quem tem menos e causa estragos. Um mundo em que a ganância se disfarça na expressão Sonho Grande e é aplaudida!

Esse mundo vem sendo construído por Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira, mas agora, com o escândalo das Americanas temos a oportunidade de mudar. De criar um mundo em que... bom, no final eu conto...

Como tudo começou

Essa história começou em 1971, ano que em Lemann, um jovem de família rica, comprou a corretora Garantia, que em poucos anos se tornaria um banco. O que poderia ser só mais uma instituição financeira tinha uma inspiração diferente no Brasil, o modelo do banco estadunidense Goldman Sachs.

E como funcionava esse modelo?

A lógica era simples: salários baixos, metas superagressivas, muita pressão e a promessa de que alguns iriam ganhar bastante dinheiro. Assédio e humilhação eram comuns nesses ambientes extremamente machistas.

Basicamente uma máquina de moer gente para ganhar dinheiro.

"Mas um ser humano toparia trabalhar num lugar desses?" Você deve estar pensando. A resposta é SIM. A promessa de super-riqueza, recheada com um bom marketing, tornou-se uma sedutora motivação para uma geração de jovens homens brancos (até hoje é quase impossível encontrar pessoas negras nesses ambientes).

Costumo dizer que o ambiente nos molda. A mesma pessoa, que xinga e briga num estádio de futebol, entra silenciosamente em uma igreja. Ao trabalhar em um ambiente tóxico, é natural que a pessoa normalize esse comportamento e passe a agir assim também.

A busca incessante por ganhar mais pode tornar a ética desprezível, assim como as leis muitas vezes são vistas apenas como entraves para frear o lucro. Não por acaso, o Banco Garantia foi alvo de inúmeras ações por assédio moral, além de ter sido multado pelo Banco Central pela prática de fraude cambial, operações irregulares e remessa ilegal de dinheiro para o exterior.

Replicando o modelo "bem-sucedido"

Com o sucesso financeiro do Garantia, o trio resolveu comprar empresas. Em 1982 adquiriu as Lojas Americanas, em 1989 foi a vez da Brahma, que junto com a Antarctica, adquirida em 1999, se tornou a Ambev. E seguiu por anos comprando empresas no mundo todo.

Quando entraram na economia real (empresas que não são do mundo financeiro), além de levar a cultura da exploração dos colaboradores, eles perceberam que apertar fornecedores também era lucrativo.

Não sou eu quem está supondo isso. O livro de cabeceira do Marcel Telles ensina como explorar fornecedores: "Um método fácil de favorecer o balanço da sua empresa é atrasar seus pagamentos. A maioria dos fornecedores prefere esperar para receber a perdê-lo definitivamente como cliente".

Imagine o que era atrasar o pagamento de um fornecedor em uma época de hiperinflação? Ou mesmo sufocar os fornecedores pagando o mínimo. Se você fosse fornecedor, acharia legal ter esse tipo de tratamento?

Mas o buraco é muito mais embaixo.

No início desse ano, foi revelado que as Americanas fraudaram o balanço para aumentar o lucro e, consequentemente, o valor da empresa. Essa mentira contábil fez com que a empresa parecesse maior e melhor do que realmente era e os executivos e acionistas receberam bônus e dividendos como prêmio pelo "excelente" trabalho.

Bancos tóxicos

Essa escola de moer gente para gerar lucro, que Jorge Paulo Lemann trouxe para o Brasil, teve seus desdobramentos. Luiz Cesar Fernandes, um dos sócios de Lemann no Garantia, ao ser forçado a se retirar do banco se juntou aos executivos Paulo Guedes (sim, ele mesmo) e André Jakurski, e juntos fundaram o Banco Pactual, com a mesma cultura tóxica, que depois seria copiada por praticamente todo o mercado financeiro.

Quis o destino que o Pactual (atualmente BTG Pactual) e Americanas, que surgiram da mesma cultura, estivessem nesse momento travando uma disputa nos tribunais por conta das fraude contábeis.

O BTG, que conhece bem a história de Lemann, Telles e Sicupira, lembrou no processo que a Kraft Heinz, outra empresa do trio, cometeu fraude contábil nos EUA e, para encerrar as investigações, fez um acordo, pagando uma multa de US$ 62 milhões (mais de R$ 310 milhões).

Os impactos

Não sabemos ainda como isso irá terminar, mas essa fraude atual está prejudicando muito os 16 mil credores, os 44 mil funcionários e os 160 mil fornecedores, além de todos os desdobramentos negativos que está causando no mercado de capitais e varejista do país.

Mas, basta os culpados serem punidos e continuarmos a ter essa cultura de moer gente sendo usada até o próximo escândalo?

NÃO! Precisamos enterrar de vez a mentalidade gananciosa que normalizamos. Ou pior, aplaudimos, nas últimas décadas.

Sonho ingênuo

O nosso Sonho Grande não tem que ser moer colaboradores e fornecedores em busca de um lucro maior.
Fraudar é ilegal.
Explorar é inaceitável.
Ganhar dinheiro explorando deveria ser vergonhoso.

Por outro lado,
Ser ético é legal.
Colaborar é necessário.
Ganhar dinheiro impactando positivamente é muito prazeroso.

Trabalho no mercado financeiro há 24 anos e posso provar que é possível ter um ambiente saudável, acolhedor e lucrativo. Em que você cuida da saúde das pessoas que trabalham com você e elas cuidam de você. Em que você financia projetos de impacto social e ambiental e ainda tem ganhos financeiros.

Agora, imagine um mundo em que as pessoas compreendam que a felicidade não é um sentimento individual, mas sim coletivo.

Um mundo em que as pessoas se sintam acolhidas em suas empresas. Em que os fornecedores sejam tratados como parceiros. Em que a felicidade das pessoas seja considerada nas decisões de negócios.

Um mundo em que o lucro financeiro tem o seu lugar de importância, mas que a vida de todos os seres é ainda mais.

Um mundo em que quem tem mais, seja saúde, conhecimento, dinheiro, privilégios... ajuda quem tem menos, não por superioridade, mas por humanidade.

Alguns me chamam de ingênuo por agir com compaixão, acreditando que é muito melhor dividir, doar, amar e até competir, mas nunca destruir. Talvez eu até seja, mas prefiro seguir sonhando assim... que venha a era dos negócios que geram dignidade e felicidade, não para uma pessoa, mas para todas! Bora sonhar e agir juntes?

*João Paulo Pacifico é CEO Grupo Gaia