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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Além dos yanomamis outros 18 mil indígenas estão sob ameaça na Amazônia

O Cacique Adamor, do povo Mura. -
O Cacique Adamor, do povo Mura.

Lucas Ferrante

Colaboração para Ecoa

27/02/2023 06h00

Nos últimos dias acompanhamos o drama vivido pelos indígenas da etnia Yanomami, situação essa provocada pelas ações do governo Bolsonaro, como apontado pelo renomado periódico Science e abordado aqui em Ecoa. Entretanto, não apenas a etnia Yanomami encontra-se ameaçada pelas políticas instituídas nos últimos quatro anos, como apontado por um estudo no periódico científico Land Use Policy, que demonstrou que mais de 18 mil indígenas tiveram seus direitos violados pela promessa de repavimentação da rodovia BR-319, que liga Porto Velho em Rondônia, até Manaus no estado do Amazonas. A rodovia que corta a Amazônia, ligando a região intocada até o arco do desmatamento amazônico afeta diretamente 63 terras indígenas, além de outras cinco comunidades que juntas abrigam mais 18 mil indígenas.

A rodovia BR-319 foi abandonada na década de 1980 pela falta de trafegabilidade, uma vez que o transporte por balsas e barcaças é muito mais barato, eficiente e seguro que a estrada. Entretanto, em 2014, ainda no governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), uma nova promessa de repavimentação deu início a manutenção da rodovia, o que fez com que o desmatamento aumentasse na região.

As projeções de desmatamento em decorrência da pavimentação da rodovia BR-319 para o final do século, indicam um aumento de mais de 1200% em relação ao desmatamento observado em 2011 para a região. Em um segundo estudo, também publicado pela revista científica Land Use Policy, foi constatado que essa região da Amazônia tem taxas de desmatamento até 2.6 vezes maior que as taxas observadas no restante do bioma, o que demonstra a extrema pressão que a rodovia tem exercido sobre a floresta. O mesmo estudo ainda apontou que desde 2015, ano de promessa da repavimentação, o desmatamento explodiu na região, sendo observado um desmatamento de mais de 28 mil hectares apenas nos anos de 2019 e 2020. O estudo ainda apontou que as terras indígenas concentram menor desmatamento que unidades de conservação (que são áreas geridas pelo governo federal) e que áreas militares, demonstrando nitidamente que os indígenas são os verdadeiros guardiões da Amazônia.

Desde 2015 muitas invasões de madeireiros e garimpeiros têm sido observadas nas terras indígenas. No município de Tapauá, estado do Amazonas, um ramal ilegal vindo da rodovia BR-319 cortou a terra indígena São João, habitada pelo povo da etnia Apurinã. Em Manicoré, outro município do estado do Amazonas cortado pela rodovia, a manutenção realizada pelo DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) aterrou igarapés (riachos), que abastecem a região do Lago do Capanã Grande, onde anciões e caciques do Povo Mura denunciam que o aterramento dos igarapés afetou o abastecimento do lago, alterando a temperatura da água, causando mortalidade de peixes, tornando a água impropria para consumo e aumentando o número de endemias, como a malária. De acordo com dados da Secretária de Endemias de Manicoré, o número de casos de malária vem aumentando desde 2015, ano do início da manutenção da rodovia pelo DNIT.

O Cacique Adamor, do povo Mura, ainda apontou que grileiros e madeireiros que tiveram acesso pela rodovia BR-319, invadiram áreas de uso tradicional indígena, onde as comunidades extraiam produtos da floresta para subsistência, como castanhas e óleo de peroba. Devido a falta de acesso dos indígenas a estas áreas em virtude da presença dos invasores, as comunidades indígenas da região perderam grande parte do recurso que dispunham para obtenção de renda pelo extrativismo, o que em conjunto com os impactos diretos sobre o Lago do Capanã Grande, por conta do aterramento dos Igarapés, afetou drasticamente a subsistência das comunidades da região.

Um estudo publicado na Die Erde, revista editada pela Associação Geográfica de Berlim, demonstrou que a violação dos direitos dos povos indígenas se intensificou na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). O estudo ainda aponta que as consequências da repavimentação da rodovia vão além dos impactos que afetam os povos nativos, causando grande perda de biodiversidade e comprometimento dos serviços ecossistêmicos como os "rios voadores", que é um fenômeno responsável por transportar a umidade da Amazônia até as regiões sul e sudeste do Brasil.

Existe um consenso entre todos os estudos de que o atual governo deve rever a repavimentação da rodovia BR-319, garantindo o direito a consulta prévia, livre e informada dos povos tradicionais afetados pelo empreendimento, como garante a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) a qual o Brasil é signatário. Desta forma, a suspensão da licença para manutenção e pavimentação da rodovia BR-319 deve ser encarada como um termômetro do comprometimento do presidente Lula (PT) com os povos indígenas da Amazônia. Rever esta obra é fundamental não apenas para proteção dos povos indígenas do Brasil, como para a proteção da nossa biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos que mantem os ciclos hidrológicos que abastecem outras áreas do país.

Lucas Ferrante é biólogo, formado pela Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL), mestre e doutor em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Dentre suas áreas de pesquisa, têm investigado como grandes empreendimentos como estradas, o desmatamento e mineração impactam os povos indígenas e os ecossistemas Amazônicos.