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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A verdade não contada: Capivara Filó, tiktoker Agenor e situação do Ibama

Capivara "Filó" é devolvida ao influenciador digital Agenor Tupinambá - Reprodução/Redes sociais
Capivara "Filó" é devolvida ao influenciador digital Agenor Tupinambá Imagem: Reprodução/Redes sociais

Lucas Ferrante

Colaboração para Ecoa, de Manaus (AM)

05/05/2023 11h30

Nos últimos dias a internet só falou em Filó, uma capivara que ganhou a simpatia de todos ao ser mostrada por Agenor Tupinambá, um jovem tiktoker do interior do Amazonas. O assunto virou polêmica quando Agenor foi autuado e multado pelo Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente) em mais de 17 mil reais e a capivara Filó precisou ser entregue ao órgão ambiental. No dia 30 de abril, a deputada Joana Darc (União), se envolveu na polêmica, onde ela e Agenor foram ao Cetas (Centro de Triagem de Animais Silvestres) do Ibama, em Manaus, buscar a capivara, e lá a deputada supostamente teria encontrado medicamentos vencidos e animais em más condições. O fato é que existem evidências robustas de que tudo tenha sido um "circo" encenado para manchar a imagem do Ibama, então vamos aos fatos:

Agenor Tupinambá, o tiktoker, não é um ribeirinho (povo tradicional da região) como tem sido divulgado na internet, mas sim um ruralista e estudante de agronomia, cuja fazenda de criação de búfalos está inserida em área invadida e desmatada com um longo histórico de autuações por órgãos ambientais. Seu avô, Elmar Cavalcante Tupinambá, responde a processos por crimes ambientais, como desmatamento ilegal e invasão de terras indígenas, além de existirem relatos de ameaças a indígenas da etnia mura. O motivo seria uma disputa de uma área de 1.500 hectares inserida na Terra Indígena de Guapenu, nos arredores de Autazes.

Agenor também utilizou seu TikTok para promover a empresa Potássio do Brasil, uma mineradora que tem desrespeitado a soberania do povo indígena da etnia mura, no município de Autazes, onde a empresa tem tentado minerar potássio sem a consulta prévia, livre e informada dos indígenas, como estabelece a convenção 169 da Organização Mundial do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário e que foi ratificada como lei no país. Os impactos da extração mineral pela Potássio do Brasil sobre o território do povo mura afetam significativamente as comunidades ali presentes, seu modo de vida, abastecimento hídrico e alimentação, sendo alvo de processo judicial pelo Ministério Público Federal para garantir o direito dos indígenas. A área também se encontra ameaçada pela criação de búfalos da família do tiktoker como relatado por indígenas.

O Ibama não autuou Agenor apenas pela tutela da capivara Filó, mas sim por outra capivara que teria morrido, por duas preguiças (sendo que uma delas também morreu sob os cuidados de Agenor), por uma jiboia, uma paca, uma arara, dois papagaios, uma coruja, uma aranha, entre outros animais que foram explorados de forma ilegal para que o tiktoker produzisse conteúdo na internet e conseguisse likes. Ou seja, Agenor não é um ribeirinho que vive em convívio harmonioso com a natureza e com os animais, e, sim, um ruralista que tem se promovido e utilizado da fauna brasileira, defendendo empreendimentos que afetam áreas de uso que são de fato de povos tradicionais que têm histórico de invasão e conflitos com seus familiares, além de já ter causado injúria e morte de animais silvestres.

Outro ponto importante é que não existem capivaras na área onde Agenor mora, levantando a questão de como a pequena capivara de fato foi parar sob seus cuidados. Uma vez que o jovem se desloca rotineiramente a Manaus, a ação correta do tiktoker ao encontrar a capivara Filó deveria ter sido a entrega do animal ao Cetas para reabilitação.

2 - Arquivo pessoal/Agenor Bruce Tupinambá - Arquivo pessoal/Agenor Bruce Tupinambá
O jovem Agenor com a filo capivara adotada desde filhote
Imagem: Arquivo pessoal/Agenor Bruce Tupinambá

A visita da deputada Joana Darc ao Cetas-Ibama: Em seu Twitter, a deputada Joana Darc fez a seguinte postagem: "Alguém chama a servidora Natália do Ibama Manaus para ser investigada na Câmara Federal? Ela precisa explicar por que descumpriu o acordo verbal de deixar visitar a filó e PRINCIPALMENTE para ela explicar por que o Cetas está abandonado, com medicamentos e vacinas vencidas sendo usadas nos animais? Marca um dep federal aqui!"

O que a deputada, que se diz em prol da causa animal, mas não é uma especialista na área e portanto, não sabe, é que a interferência humana atrapalha o processo de reabilitação de animais silvestres, logo, o Ibama agiu corretamente ao bloquear a entrada do infrator Agenor e da deputada ao local em que se encontrava a capivara Filó. Além disso, as alegações da deputada sobre vacinas e medicamentos são levianas e infundadas, pois: 1º) o Ibama não aplica vacinas nos animais, apenas em raras ocasiões em que se justifique; 2º) os medicamentos vencidos estavam estocados para descarte adequado, uma vez que não se pode descartar medicamentos no lixo comum. Ou seja, apesar do sensacionalismo, não existiam irregularidades no Cetas.

Em um estudo publicado na Environmental Conservation, revista científica editada pela Universidade de Cambridge, foi apontado que os servidores do Ibama foram perseguidos por uma agenda ruralista durante o governo Bolsonaro e que o órgão sofreu um desmonte severo nos últimos quatro anos. O que vemos hoje, são funcionários dedicados que têm se empenhado ao máximo e gerido da melhor forma o instituto, apesar do sucateamento e do corte de recursos. Após a posse do presidente Lula, o Ibama voltou a realizar fiscalizações ostensivas na Amazônia, principalmente contra áreas indígenas invadidas, o que gerou a represália de muitos criminosas e ruralistas contra o órgão.

Se existe alguém que precisa ser investigado, é a própria deputada e o infrator Agenor, uma vez que as ações da deputada e do tiktoker levaram a uma onda de ataques contra o Ibama e seus servidores na internet, além de ambos descumprirem as ordens da funcionária pública do órgão ambiental e causarem uma algazarra sensacionalista no Cetas, que é um lugar de reabilitação animal e precisa ter silêncio. Preocupantemente, em seu Instagram, a deputada insiste que servidores do Ibama deixaram medicamentos vencer para manchar o nome do Instituto. Entretanto, medicamentos são ministrados conforme existe demanda, e não se pode ministrar um medicamento em um animal que não demanda tal cuidado apenas porque este medicamento está para vencer, portanto, é natural que medicamentos vencidos sejam estocados para ser descartados de maneira adequada posteriormente.

Porque as ações do tiktoker são tão nocivas: As ações de Agenor com animais silvestres são extremamente prejudiciais para a conservação por dois fatores: o primeiro, porque estimula que pessoas interajam com a fauna silvestre ou retirem os animais do seu habitat natural. A interação de pessoas com animais silvestres, representa um risco para ambos, tanto porque animais silvestres acostumados aos humanos correm maior risco de caça, coleta e atropelamento, como pela imprevisibilidade do comportamento destes animais que pode resultar em um ataque às pessoas próximas. Outro fator importantíssimo a se considerar, é que essas interações podem propiciar saltos zoonóticos, tema já abordado aqui em UOL Ecoa, onde um patógeno de um animal silvestre pode contaminar um humano, podendo dar origem inclusive a uma nova pandemia. Além disso, humanos também podem contaminar os animais, como exemplo, podemos citar um surto de hanseníase registrado em tatus, cuja origem foi a transmissão do ser humano para os animais. Alertas do risco de saltos zoonóticos na Amazônia já partiram de periódicos científicos como Anais da Academia Brasileira de Ciências, Science Advances e Regional Environmental Change. É crucial que a população entenda que os profissionais do Ibama agem tecnicamente, visando conter zoonoses e buscando o melhor para o bem-estar dos silvestres, respeitando suas necessidades ecológicas. Além disso, o próprio Cetas em parceria com a Fiocruz Amazônia tem um projeto de monitoramento de zoonoses nos animais.

Decisão judicial equivocada e sem respaldo técnico adequado: No dia 30 de abril, após a presença de Agenor e a deputada Joana Darc no Cetas em Manaus, uma decisão judicial emitida pelo juiz Márcio André Lopes Cavalcante, da 9ª Vara Federal Cível de Manaus, determinou que o Ibama devolvesse a capivara Filó a Agenor. O magistrado argumentou na decisão judicial que: "Não há muros ou cercas que separam o casebre de madeira do autor em relação aos limites da floresta. Os animais circundam a casa e andam livremente em direção à residência ou no rumo do interior da mata. Não há animais de estimação no quintal da casa do autor porque o seu quintal é a própria Floresta Amazônica. Percebe-se, portanto, que não é a Filó que mora na casa de Agenor. É o autor que vive na floresta, como ocorre com outros milhares de ribeirinhos da Amazônia, realidade muito difícil de ser imaginada por moradores de outras localidades urbanas do Brasil".

Entretanto, Agenor não se enquadra como ribeirinho, e também não existem populações de capivaras na área em questão, o que derruba o argumento do magistrado. Visto que a capivara não foi naturalmente até a casa de Agenor, mas sim foi retirada do seu habitat natural e levada para a área, o que priva o animal do convívio com sua espécie, não é possível admitir que o animal está em perfeita simbiose com a floresta como atestado pelo juiz. Cabe ressaltar ainda que a área detém histórico de desmatamento ilegal, o que claramente é o motor dos riscos à fauna silvestre.

O parecer técnico apresentado para embasar a ação sobre as condições do Cetas também precisa de mais esclarecimentos, uma vez que muitos dos veterinários que assinaram o parecer tem histórico de trabalhos com a deputada Joana Darc, o que classificaria uma parcialidade do documento. Entre as alegações do relatório, foi apontado que o recinto é demasiadamente pequeno, fator comum, visto que o Cetas é um ambiente temporário e de avaliação dos animais, cujo destino final é a reintrodução na natureza. Outro fator apontado no laudo foi o cheiro forte de urina no recinto, o que também é comum, pois os mamíferos marcam seu território com urina e fezes ao ser colocado em um novo ambiente, o que os torna mais relaxados no espaço demarcado. Entretanto, estes aspectos básicos do comportamento de mamíferos e do processo de triagem foram completamente ignorados no parecer, dando a entender que haveriam anomalias ou descuidos do Ibama. Vale ressaltar que o Cetas tem um projeto para tornar todos os recintos de triagem inoxidáveis, mesmo com o sucateamento dos últimos anos, tendo como finalidade melhorar ainda mais a condição dos recintos.

Estes ataques ao órgão público levam a outra questão, a necessidade da deputada ser levada a comissão de ética da Assembleia Legislativa do Amazonas, assim como o Ministério Público investigar as alegações sensacionalistas e a possibilidade de um parecer parcial que influenciou na decisão judicial e criou um factoide, o que acabou promovendo a causa da deputada, difamando o Ibama e seus servidores. É crucial que se faça uma defesa do Ibama e que a população entenda que o Ibama é um órgão técnico e que visa o bem-estar dos animais em seu habitat natural, pois é fundamental que os animais recuperem seus instintos naturais no Cetas antes da reintrodução, o que torna crucial o isolamento em relação aos humanos. É necessário que Ministério Público investigue a situação, comparando o parecer que embasou a decisão judicial com pareceres de avaliação sobre a situação do Cetas que sejam emitidos por pesquisadores, doutores, especialistas em mastofauna (mamíferos), como pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e Universidade Federal do Amazonas (UFAM) que são referência em conservação e estudos sobre a fauna amazônica. Estas são as duas instituições que concentram os grandes especialistas e ouvi-los torna-se crucial para que pareceres parciais não sejam utilizados e que isso não reverbere como intimidação contra o Ibama e seus servidores, que tem zelado pelo cumprimento da legislação ambiental.

*Lucas Ferrante é biólogo, formado pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal), mestre e doutor em biologia (ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Dentre suas diferentes áreas de pesquisa, tem pesquisado a grilagem e invasão de terras na Amazônia, zoonoses e a conservação da biodiversidade. Também tem contribuído ativamente nas avaliações de espécies ameaçadas do Brasil.