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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Da banana na escola ao enfrentamento: carta de um Vinícius negro pra outro

Graffiti retratando o jogador de futebol brasileiro Vinicius Junior, pintado ao lado da casa de seus avós em sua cidade natal, São Gonçalo, nos arredores do Rio de Janeiro - Florian Plaucheur/AFP
Graffiti retratando o jogador de futebol brasileiro Vinicius Junior, pintado ao lado da casa de seus avós em sua cidade natal, São Gonçalo, nos arredores do Rio de Janeiro Imagem: Florian Plaucheur/AFP

Vinícius Vieira

24/05/2023 15h56

Acompanhar toda a violência racial sofrida por Vinícius Jr. durante o jogo entre Real Madrid x Valencia, no Estádio de Mestalla, no último domingo, mexeu demais com esse Vinícius que vos escreve. Mesmo não tendo a juventude e o talento para bola do xará, herdamos o mesmo tom de pele e as dores causadas pelo racismo. Essa não é a primeira vez que Vinícius Jr. passa por uma situação como essa na Espanha, mas ouso dizer que não foi apenas diante desse contexto que ele foi chamado de "macaco".

Se levarmos nossas semelhanças para além do nome e da pele, Vini Jr. provavelmente também foi chamado de macaco durante a sua infância e adolescência. Ver a cena do jogador indefeso diante de uma multidão enfurecida fazendo gestos animalescos, levando mata-leão dos jogadores do time adversário, sendo silenciado até mesmo pelos companheiros de time e sendo injustamente expulso da partida, me levou de volta para minha adolescência.

Lembrei de um dia em que a sobremesa da merenda escolar era banana e o pátio inteiro da escola esperou silenciosamente eu pegar a fruta para explodir de ofensas como o Estádio de Mestalla lotado em gargalhadas e imitações de macaco. Enfurecido, fui em direção do primeiro que eu vi na frente para poder acertá-lo com violência, mas fui confrontado por um "amigo" que, tal qual Benzema, pediu para eu ter calma: "Se você ficar bravo vai ser pior. Leva na esportiva".

Se a bola não despertou o mesmo encanto em mim como teve pelo meu xará, fiz do jornalismo a minha profissão, contando também com a música como minha atividade secundária nas horas vagas. Enquanto Vini Jr. baila pelos campos mundo afora ao som do samba a cada comemoração de um gol, quis o meu coração bater mais forte pelo rock, música originalmente negra de expoentes como Sister Rosetta Tharpe, Chuck Berry, Little Richard, Fats Domino, Bo Diddley, Jimi Hendrix, Tina Bell e grupos negros como Bad Brains e Living Colour, mas que apropriada culturalmente por Elvis Presley se tornou um som majoritariamente branco.

Vinícius Vieira, jornalista - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Vinícius Vieira, jornalista
Imagem: Arquivo pessoal

Nesses espaços embranquecidos, sendo o único integrante negro da maioria das minhas bandas em que toquei, já fui impedido de subir em um palco, já fui confundido com um roadie [técnico de apoio], além de ter sido chamado para apartar uma briga, pois acharam que eu era o segurança do recinto.

Também me senti indefeso quando no ano passado eu me apresentei com a minha banda em um bar no bairro de Perdizes, em São Paulo, e no final do show, enquanto carregávamos os equipamentos para o carro, eu, para chegar mais depressa ao veículo, tomei a decisão de correr até o mesmo, e nesse momento, uma mulher branca, que estava na mesma calçada, na companhia de uma amiga, ficou estática, com olhares assustados, até ela me reconhecer e esboçar um sorriso dizendo: "Nossa, é você".

Quando eu entrei no carro, o integrante da banda que estava ao volante disse: "Enquanto você corria, ela dizia pra amiga 'miga, vem vindo um cara suspeito em nossa direção, meu Deus'". Horas antes, essa mesma pessoa dançou ao som da música que eu tocava e comprou uma camiseta da nossa banda diretamente das minhas mãos.

Desde domingo muitos veículos têm tentado compreender o comportamento dos torcedores do Valencia. Por que um estádio inteiro proferiu xingamentos racistas para um jovem negro?

As respostas são muitas, mas eu me apegaria ao fato de que a pele retinta de Vinícius Jr. incomoda, e muito mais do que isso, o xará não age conforme a branquitude se espera de um negro. Vini Jr. comemora os seus gols dançando.

Na música não foi diferente. Quando Nina Simone resolveu fazer dos seus shows um grande ato de protesto após as mortes de Martin Luther King Jr. e Malcolm X, na década de 1960 a imprensa musical a chamava de "louca" e dava ênfase aos seus problemas com drogas e álcool.

A mesma imprensa que anos mais tarde iria silenciar as opiniões certeiras de Michael Jackson sobre apropriação cultural [como a carta que ele escreveu, em 1987, falando que Elvis, Bruce Springsteen e Beatles não eram melhores cantores e dançarinos do que artistas negros], e focava em suas excentricidades e na sua "mudança de cor". A branquitude não permite que um atleta ou um artista negro se posicionem, mas espera uma posição de servidão.

Após a violência sofrida no último domingo, Vini Jr. ainda foi às suas redes sociais dizer "Eu sou forte e vou até o fim contra os racistas".

Na segunda-feira (22), diante de uma homenagem que manteve o Cristo Redentor com as luzes apagadas em solidariedade ao atleta, o jogador afirmou que "se eu tiver que sofrer mais e mais para que futuras gerações não passem por situações parecidas, estou pronto e preparado".

É desumano que um jovem de apenas 22 anos carregue esse fardo pesado do racismo, enquanto a população branca segue perpetuamente no direito de ser racista, com o seu crime sendo disfarçado de "liberdade de expressão" ou apenas uma "resposta às provocações".

Dados da OMS (Organização Mundial da Saúde) mostram que o suicídio é a segunda causa de morte entre jovens de 15 a 24 anos, por causa da depressão. Estamos assistindo de camarote o ataque à saúde mental de um jovem brilhante como o Vinícius Jr. e só se indignar não basta.

Portanto, meu xará, assim como eu discordei de ti na escolha da profissão e no gosto musical, eu venho publicamente dizer que você não precisa ser forte o tempo todo por algo que não é culpa sua. É necessário a branquitude reconhecer os seus privilégios e decretar o fim de um sistema criado por eles próprios para nos oprimir. Esse peso são eles que têm que carregar, enquanto nós devemos sorrir e bailar, como você faz muito bem.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL