Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Benedita Casé: Como uma mulher surda pensa a diversidade?
Sons para mim são vibrações. As palavras me impactam mais pela intensidade do que pelo volume, ainda mais em tempos de pouco diálogo, onde querem falar mais do que ouvir. Eu fico à espera de palavras que vibrem em meu corpo ou voem pela mecânica da boca da pessoa de quem faço leitura labial. É assim que compreendo as palavras. Na interseccionalidade de uma mulher surda, com um irmão preto, e um filho com um homem preto, tenho atenção redobrada às vibrações das palavras e aos sentidos que elas produzem ou escondem.
Um dia desses um amigo me disse em alto e bom tom: "A escola forma pessoas horríveis". Logo pensei sobre o que havia escondido naquelas palavras que ecoavam fortes e traziam verdades. Na escola eu tive momentos muito felizes ao lado de pessoas maravilhosas. Mas também foi na escola que me senti rejeitada por ser uma mulher com deficiência auditiva. Foi na escola que disseram que talvez não estivessem bem preparados para me receber como aluna. Nas festas da escola sempre havia uma tensão para mim na hora da dança com música lenta. Nunca conseguia um par. Na escola que às vezes levava falta por não ouvir a chamada quando nenhum amigo estava por perto. Foi na escola que achei que não podia ser bonita, porque era sempre excluída dos competitivos rankings de beleza dos meninos; foi na escola que tentaram me dizer que futebol não era jogo para meninas. Foi na escola que falaram comigo através de mímicas e gritos.
Hoje adulta me sinto segura para ter minhas opiniões e discordar das opiniões dos outros. Mas como mãe, penso muito em como preparar meu filho para ele não apenas se proteger das opiniões que irão construir sua autoestima, como ter consciência sobre suas potencialidades e os segredos escondidos nas palavras. Penso muito nele não julgar os outros e procurar participar de forma livre em todas atividades da escola. E mais que isso, que ele não se deixe levar pela opinião dos amigos que às vezes nem é a dele.
Porque no fundo não se trata somente de ter ou não opiniões sobre os outros e os outros sobre ele. As opiniões são a base de uma camada mais profunda: a camada do poder.
No ambiente escolar é onde crianças e adolescentes começam a querer ter poder. Quando a vontade de poder se mistura com as opiniões das pessoas é que a coisa fica ainda mais séria. Porque sempre penso no seguinte: como esse ambiente pode nos educar e nos preparar para enfrentar uma sociedade tão capacitista, machista, homofóbica e racista? Tudo na escola gira em torno de julgamento, poder e competição; e nós, mães, pais, professores e alunos alimentamos essa lógica.
O futebol me dava uma liberdade de não ter que estar atenta a tudo o que estavam falando. Não sofria na hora de escolher e ser escolhida para tirar o time de futebol, porque sempre joguei bem e era escolhida rápido.
Mas outro dia vi essa situação por outra perspectiva. Vi meu filho viver na pele esse momento e isso me trouxe uma reflexão mais profunda. Era uma comemoração de aniversário e eles fizeram um mini campeonato de futebol como atividade entre os colegas da escola. Naquele momento, o professor pediu que dois dos meninos escolhessem os times e deu para perceber que ele estava muito nervoso e preocupado se seria o último a ser escolhido ou talvez ficar de fora. Ele me olhava tenso, e eu correspondia com uma cara como quem diz: "tá tranquilo filho, fique calmo, vai dar tudo certo."
Brás usa muito o recurso da leitura labial para falar comigo de longe em situações que não quer que mais ninguém veja ou escute. De longe ele me respondeu sem fazer qualquer som, mas articulando a boca, como sempre, e me disse: "Eu quero ser escolhido, mamãe." Pois é, eu também quis ser escolhida muitas vezes na minha vida, em diversas situações. Naquele momento me vi no meu filho.
Na escola somos definidos pelo que os outros acham de nós. E é só quando crescemos que vamos descobrir que isso tem muito a ver com a construção da nossa autoestima. Falar de autoestima está na moda, mas acho importante pensar nisso desde cedo: autoestima é a imagem que construímos de nós mesmos e as opiniões das pessoas contam muito nessa construção.
Foi essa situação que me fez refletir sobre muitas das dinâmicas que causam traumas nos momentos decisivos das nossas vidas e que depois a gente reproduz nos comportamentos em sociedade. Como os currículos nas empresas são selecionados? Como somos escolhidos na hora da promoção para um cargo? Os amigos que você escolhe na escola, no time, seguem esses mesmos critérios de escolha. Estamos acostumados a escolher quem é mais parecido com a gente. Se existe uma pessoa com deficiência no grupo de pretendentes, certamente ela será a última a ser escolhida.
É importante lembrar que estou dividindo vivências com a consciência de que tenho uma passabilidade, a partir do momento em que a minha deficiência não é tão aparente. E sendo uma mulher cis branca, mais privilégios ainda. Quanto mais "invisível" a deficiência, mais aceita é a pessoa nos ambientes sociais. Então, quanto mais opiniões sobre o quanto alguém é "estranho", fora dos padrões do que é visto como normal, mais demorará para ser escolhido.
O ambiente da escola acaba sendo um laboratório de várias experiências que colocam de lado as pessoas mais "fragilizadas", ou melhor, que pelas opiniões são consideradas como as mais "frágeis". A sociedade nos enxerga como frágeis, quando na verdade não somos. Na verdade, eu te pergunto: as pessoas sem deficiência não têm suas "fragilidades" como todo ser humano, carente de cuidado, atenção, reconhecimento e amor? Por que então essas opiniões sobre nós insistem em nos colocar abaixo dos outros numa hierarquia autoritária de poder?
O que vivi com o meu filho Brás me fez lembrar de tudo isso. Para pessoas com deficiência é mais complicado, porque temos o famoso carimbo PCD. Se ele já tem essa preocupação, de querer ter amizades, coisas que a gente sabe que são muito importantes para nossa formação, imagine nós enquanto pessoas com deficiência.
O ambiente da escola é um período em que construímos relações afetivas importantes para nossa vida adulta. E é por isso que se torna uma responsabilidade nossa pensar na criança vivendo numa arena dominada por julgamentos e provas, sem musculatura para se defender do capacitismo velado e muitas vezes escancarado. A sensação que eu tenho é que está todo mundo correndo atrás de um tempo perdido, de algo que deveriam ter feito e entendido muito antes. As empresas, por exemplo, estão "preocupadas" com a diversidade muito mais por obrigação do que por acreditar que devem fazer uma escolha intencional pela diversidade. Parece que chegam tarde nesse rolê e que não resolvem essas questões quando devem ser resolvidas. Antes, bem antes. Talvez lá na escola!
Mas por que a gente só entende isso tão tarde? Por que será que a escola forma pessoas ruins? Hoje em dia cada vez mais se discute sobre o bullying e quando me perguntam qual é a coisa mais determinante para mim na hora de escolher a escola do meu filho, eu sempre penso em DIVERSIDADE.
Percebo que muitos pais estão preocupados com desempenho, números, competitividade dos seus filhos, e não se preocupam se seus filhos dizem obrigado ou se são gentis com os amigos. A preocupação com o desempenho é muito maior do que como ele será enquanto ser humano.Precisamos trocar a palavra competição por inclusão.
E mais do que isso: precisa ser intencional, precisamos querer, desejar, querer de verdade! E essa intencionalidade deve ser plantada desde cedo. Será que o nosso filho vai ser gente boa, vai tratar bem as pessoas, vai ter respeito, vai acolher as diferenças, vai ser um cara justo e, principalmente, que vai ser inclusivo no rolê? O meu desejo é que famílias e escolas se preocupem mais com isso, para que um dia eu possa dizer para o meu amigo, em alto e bom tom: "A escola forma pessoas boas!"
*Benedita Zerbini é diretora audiovisual, produtora de conteúdo digital e realizadora de documentários, peças publicitárias e programas de TV. Palestrante, formada em Design. Carioca de 33 anos, botafoguense, mãe do pequeno Brás e surda oralizada.
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