Opinião

As federações de partidos políticos e a cota de gênero: quem paga a conta?

Em momentos da história, as mulheres eram oferecidas em casamento como parte de acordos políticos ou para unificar territórios e impérios. De lá pra cá, apesar da negociação do corpo da mulher ainda acontecer em alguns lugares do mundo, essa prática ganhou novas roupagens.

Em pleno 2023, o Brasil, país considerado em processo de desenvolvimento, está silenciosamente jogando os 91 anos do direito de ser votada em um rio de piranhas, através da minirreforma eleitoral que foi aprovada na Câmara dos Deputados, em regime de urgência, e agora aguarda aprovação do Senado Federal.

A pressa servirá para que as novas regras passem a valer nas eleições municipais do próximo ano. Todavia, nesta primeira fase de elaboração do texto-base da minirreforma, os direitos das mulheres foram fragilizados enquanto estávamos cantando "Chico, se tu me quiseres...", sem perceber que o Chico votou a favor do uso do dinheiro das candidatas para qualquer outro postulante.

FATO OU FAKE

Baseado no exemplo de uma mulher candidata que foi denunciada e multada por usar santinhos com os rostos de dois candidatos masculinos durante sua campanha, alguns deputados consideraram alterar a lei permitindo que "o dinheiro reservado para campanhas femininas poderá custear despesas comuns com outros candidatos, inclusive propaganda, desde que haja benefício para a candidatura feminina."

De acordo com o resumo da história contada pelo deputado Rubens Pereira Júnior durante uma coletiva de imprensa, entendemos que a candidata multada por conta dos santinhos aplicava uma ''ação comum'' na corrida para os cargos legislativos. As fotos no tradicional minipanfleto eram de candidatos que ela apoiava em outras esferas. Normalmente, quem concorre no processo eleitoral também troca apoio com outros candidatos. É de praxe um deputado federal pedir voto para mais de um deputado estadual ou um candidato ao senado pedir voto para mais de um candidato a deputado federal e vice-versa. Essas são as chamadas dobradas.

No fato narrado pelo relator do grupo de trabalho da minirreforma, ele também menciona que candidatos masculinos usando da mesma estratégia não foram multados. Então, em vez de eles questionarem o próprio MPE (Ministério Público Eleitoral), responsável pelo julgamento da decisão desta senhora, preferiram alterar a lei e legalizar uma prática conhecida, que ocorre nos corredores da política eleitoral. A quem interessa flexibilizar o uso do dinheiro das mulheres se fazendo valer de um caso que deveria ser mais discutido?

O PREÇO DE UMA MULHER

Em 2021, através da Resolução 23.670, o Brasil instituiu um modelo chamado federações de partidos políticos. Atualmente, possuímos 3 federações registradas no TSE, são elas: Federação Brasil Pela Esperança (Fe Brasil), formada pelos partidos PT, PCdoB e PV; Federação PSDB Cidadania e Federação PSOL REDE. Outro destaque aprovado no Congresso retira dos partidos federados a obrigação individual de cumprir os 30% da cota de gênero e repassa essa responsabilidade à federação. Com isso, os partidos menores terão menos chances de lançar mulheres como candidatas. Em um aglomerado como Fe Brasil, um único partido que compõe a federação poderá cumprir e terá suprido a regra. O impacto dessa minirreforma será sentido localmente onde a conjuntura e decisões políticas das cidades se distanciam drasticamente das nacionais.

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Flexibilizando o uso do dinheiro e retirando obrigações, se a cota de gênero fosse um barco, neste momento estariam lhe arrancando os motores. Ficaremos à deriva se o Senado Federal também aprovar essa mudança.

INCOERÊNCIA

O combustível de toda campanha é o dinheiro. Algumas conseguem driblar colocando pessoas e sonhos no lugar. Mas, quando tratamos de um projeto amplo, de uma reparação histórica e avanço de direitos, o barco só acelera injetando grana mesmo. Nós precisamos aprender a falar sobre recursos, cientes de que a última coisa que vão repartir com as mulheres não é o amor, é o dinheiro. Mesmo sendo nosso direito oriundo de recurso público. Dinheiro é poder!

Entenda que, quando as federações tentam avançar na redução de suas obrigações, estamos falando sobre reduzir a aplicação do dinheiro onde deveria. Quando tentam flexibilizar o dinheiro das mulheres, estamos falando sobre legalizar o desvio do recurso.

As federações justificam que carregam o ônus da cota de gênero, mas, em outra linha do texto-base, os mesmos pedem para que as penalidades jurídicas pelo mau uso do recurso de campanha sejam exclusivamente do partido, não da federação. Argumentos incoerentes passando em regime de urgência. Por que as mulheres ficarão com essa conta enquanto aprovam a compra de veículos, embarcações e aeronaves?

*Hanna Pereira é consultora de campanhas eleitorais, especialista em mobilização e consultora sócia na agência MAC 9.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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