Opinião

Cidadania de papel: como conceito explica as desigualdades brasileiras

Josué de Castro descreveu os mangues de Recife como uma paisagem onde a lama fervilha de caranguejos e é "povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejo". No entanto, como afirma Chico Science, "saiu do mangue, virou gabiru". Gabiru é o rato de esgoto das cidades, por isso a associação aos homens gabiru, que vivem do lixo.

Uma mostra chamada "Homem-Gabiru", do fotógrafo Daniel Aamot, revelou a dura realidade vivida por moradores em situação de rua, evidenciando as condições desumanas e a vulnerabilidade extrema. No entanto, ao longo do tempo, a comunidade de Peixinhos, em Olinda (PE), testemunhou a transformação desse homem-gabiru em "homem-urubu". Simbolizando a triste realidade de sobreviver à base de carniças.

Essa transformação é uma metáfora impactante que nos instiga a refletir sobre o papel das políticas públicas na construção de uma sociedade mais justa e igualitária. O legado dessas décadas de luta deve inspirar esforços contínuos pela garantia dos direitos humanos e pela superação das adversidades enfrentadas por comunidades periféricas.

Com uma população onde 75,77% se identificam como pardos ou pretos e onde as mulheres são responsáveis por mais da metade dos domicílios, Peixinhos destaca-se por sua economia majoritariamente informal, com a maioria dos residentes envolvidos em atividades comerciais locais, serviços domésticos e empregos informais. Apesar da rica diversidade cultural, o bairro enfrenta desafios socioeconômicos significativos, incluindo moradias precárias, falta de infraestrutura básica, ausência de políticas públicas para segurança e acesso limitado a serviços públicos de qualidade.

Muitas transformações ocorreram em nossa comunidade ao longo do tempo, impulsionadas por diversas políticas públicas, especialmente as de âmbito federal, que visam a transferência de renda. Contudo, mesmo diante dessas mudanças, é evidente que muitas questões persistem, destacando-se, sobretudo, a desigualdade.

As pessoas sobrevivem de biscates ou reciclagem de lixo, onde vários galpões de reciclagem surgiram nessas áreas, outros saem de carroça com cavalos à procura de comida que os mercados jogam fora, com datas vencidas, restos lavagem para porcos. Ao retornar para casa, os moradores correm para cima da carroça, separando as frutas, queijos, carnes entre outros alimentos apodrecidos para levar à sua mesa e alimentar sua família. Dessa maneira, o homem-gabiru virou homem-urubu, que espera o alimento virar carniça para poder comer.

É triste ver a alegria na comunidade quando a carroça chega, as mulheres se aproximam para pegar, colocar a mão dentro de uma lavagem fedida e podre, numa alegria só, pois sabem que neste dia terão o que comer. Tirando carnes podres, dizendo que dá para aproveitar, como em pleno século 21 a condição humana dentro das periferias retrocede tanto, frente às lutas por direitos?

Como pensar em um grande número de pessoas dentro de cada comunidade periférica, sobrevivendo de carniças e a cada ida e vinda na busca da sobrevivência não vislumbram nenhum tipo de melhoria sobre o estado de letargia que essa negação de dignidade dos seus direitos causa. É nítido o racismo ambiental e estrutural que persegue por muitas décadas as famílias periféricas. Das pessoas que nascem e crescem nas localidades afetadas, poucas são inseridas na teia social elitista e discriminatória.

Observamos que os ciclos se repetem em gerações que afetam as infâncias, as adolescências e a fase adulta, onde pessoas e seus sonhos foram tolhidos pela necessidade voraz de ter o que comer dia a dia, diante do cenário de desprezo e abandono dentro das periferias, trazendo os recortes de várias violações de direitos que exploram gradativamente o seres humanos.
Enfatizamos seres humanos, pois "todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos". A fome e a vulnerabilidade que ela traz para essas vidas representam uma significativa contradição em relação à cidadania e à garantia de direitos estabelecidos nas leis do nosso país.

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A grande maioria dos Homens, Mulheres, Meninos e Meninas, Caranguejos, Gabirus e Urubus só acessam a cidadania no papel. As pessoas da nossa comunidade são o que jornalista Gilberto Dimenstein chamava, na década de 1990, de Cidadãos de Papel. Esta realidade persiste.

* Elisangela Maranhão é educadora popular e pedagoga. Teve o seu primeiro contato com os movimentos sociais em 1989, quando se envolveu nas atividades do Grupo Comunidade Assumindo suas Crianças (GCASC). Coordenou o Projeto Mães da Saudade e dedicou-se à defesa dos direitos à vida em seu bairro, Peixinhos, em Olinda-PE. Vencedora do 2ºPrêmio ECOA na Categoria Iniciativas que Inspiram.

Mário Emmanuel é historiador (UFRPE) e mestrando em História na UFRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco). Desenvolve pesquisas no campo da História das Infâncias, com ênfase na participação de crianças e adolescentes.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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