Escolas precisam transmitir o conhecimento dos povos originários do Brasil
No Brasil que inventou o mito do descobrimento, uma das coisas que urgem serem descobertas é justamente a contribuição deixada por raízes culturais profundamente milenares, potentes de saberes diversos que em seu conjunto estruturam uma filosofia que fala ao coração do ser, que incluem e integram a natureza como uma extensão da comunidade, da família e do indivíduo.
Já não é de hoje que a sociedade brasileira é convidada a ressignificar o dia 19 de Abril. Instituída erroneamente como Dia do Índio, a data foi atualizada em 2022 em um reconhecimento à contribuição dos povos originários para a sociedade brasileira como um todo.
Hoje, o Dia dos Povos Indígenas é uma data para reacender a busca pelo reconhecimento de direitos e correção das injustiças e violências históricas infligidas contra os povos originários dessas terras. Além disso, a efeméride nos provoca a discutir a valorização de seus saberes e cultura com a dimensão da real riqueza e profundidade que possuem. E, certamente, destacar a devida relevância da sua contribuição para o enfrentamento de diversas das crises sociais, ambientais e econômicas que ameaçam a sociedade contemporânea.
No campo da educação, a lei 11.645 buscou implementar a cultura indígena nas salas de aulas, mas observamos que, quando ela é respeitada, a legislação aparece no cotidiano escolar por meio de comemorações em torno da efeméride do dia 19, muitas vezes de forma estereotipada ou reducionista.
Enquanto isso, na BNCC (Base Nacional Comum Curricular), não encontramos uma menção à importância de reconhecer cosmovisões indígenas como componentes curriculares a serem considerados para o desenvolvimento de competências múltiplas. É um ponto frustrante quando sabemos as contribuições que estamos perdendo.
O mês de abril também foi escolhido como o nascimento de uma nação brasileira que tem ignorado as contribuições das mil nações que deram corpo e animaram visões de mundo diversas nos mais diversos ecossistemas que sustentam a beleza da vida neste país continente. Tem ignorado também a dor de povos de um dia para o outro serem considerados estrangeiros em seu próprio lugar. Tem ignorado os direitos constitucionais dos remanescentes destas culturas milenares viverem de acordo com seus respectivos modos tradicionais de vida, que curiosamente são um exemplo de viver sustentável.
Isto gera um desequilíbrio social, ecológico e psicossocial que só pode ser reparado por uma educação que reveja os mitos e os falsos paradigmas baseados na exclusão, na invisibilização da presença das mais de trezentas culturas remanescentes dessa ancestralidade nacional e transnacional, e na ignorância das contribuições que vão desde as tecnologias sociais desenvolvidas até as filosofias fundadas sob a base da sustentabilidade que nos foram deixadas por legado.
Em tempos complexos, em que percebemos uma certa apatia na sociedade e ainda assim assistimos a expressões trágicas de violência seja no âmbito institucional, seja no pessoal, da mesma forma conseguimos ver tanto a ansiedade quanto a depressão se alastrarem a níveis epidêmicos.
Nesse cenário, a busca por caminhos para desenvolvermos ferramentas de construção de algum equilíbrio, senso de diálogo, propósito e paz é algo premente.
Uma prova disso é este próprio artigo, escrito a quatro mãos por um ativista e intelectual indígena e por um homem branco que há trinta anos dialogam juntos em projetos de educação em espaços não formais de aprendizado.
Em tempos de polarização aflorada pelas redes sociais (e que estão cooptando cada vez mais nossas juventudes), talvez a colaboração intercultural seja uma proposta valiosa para ser compartilhada na educação formal.
Muito se discute sobre o lugar da educação para transmitir o conhecimento dos povos originários, como uma forma importante de preservação da memória e de reconhecimento de lutas. Mas aqui destacamos como as cosmovisões desses povos também podem ser ferramentas pedagógicas, e que estamos perdendo a não cuidar delas.
Observamos que há falta de investimentos públicos e de materiais didáticos adequados para falar de cultura indígena na sala de aula. Por outro lado, as escolas indígenas também carecem de recursos de pessoas e de materiais para formar pessoas que, no futuro, seriam guardiãs fundamentais de cosmovisões vivenciadas por elas enquanto povo.
São lados distintos, mas que ainda convergem para um mesmo problema de epistemicídio - uma palavra-chave para entender as formas de matar um povo ao negar a difusão de seus saberes.
Precisamos construir uma educação que contemple as diferentes visões de mundo e culturas dos povos indígenas, isto é, uma epistemologia que valorize os saberes ancestrais.
*Kaká Werá Jecupé é escritor, ambientalista e tradutor indígena brasileiro, descendente do povo tapuia e acolhido pela comunidade guarani, com a qual desenvolve uma extensa pesquisa histórica, linguística e cultural.
*Rodrigo Rubido, arquiteto, educador, cofundador e diretor do Instituto Elos, há 25 anos trabalha com desenvolvimento pessoal e comunitário e pratica colaboração intercultural para a formação de lideranças no programa Guerreiros Sem Armas que já envolveu milhares de pessoas de 57 países.
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