Homenagem a João Cândido é oportunidade para autocrítica dos militares
Tema de polêmica recente, a homenagem via projeto de lei a João Cândido, o "Almirante Negro", líder da Revolta da Chibata (1910), é exemplo de um direito garantido na Constituição brasileira e assim deveria ser vista.
Em julgamento recente sobre direito ao esquecimento, o STF (Supremo Tribunal Federal) deliberou ser "incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social, analógicos ou digitais".
Vale lembrar que o direito à memória ingressa na Constituição de 1988 em relevantes searas, dentre as quais a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais; o tombamento de documentos e sítios detentores de reminiscências dos antigos quilombos; e a obrigatoriedade da inclusão, no ensino da história, das contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro.
A preocupação com o ensino da história e cultura africana, por exemplo, resultante da pressão do Movimento Negro sobre a Assembleia Nacional Constituinte, desvela não apenas anteposição ao apagamento histórico, ao aniquilamento da altivez e protagonismo que marcam a presença dos africanos e seus descendentes no Brasil, como também visava impedir a reescrita da história de acordo com valores e ideologias dos donos do poder.
Bem por isso, no julgamento do famoso caso Ellwanger, um editor de livros do Rio Grande do Sul que pretendia negar o nazismo, o STF proclamou que "no estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável".
É nesse contexto normativo que deve ser analisado o PL 4046 que propõe a inclusão de João Cândido Felisberto (1880-1969), que lutou contra os castigos físicos na Marinha, no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves. A Constituição da República proíbe que a Marinha do Brasil ou qualquer outra instituição contrarie um episódio histórico de heroísmo negro amplamente comprovado, esquadrinhado, analisado e minuciosamente descrito por cientistas vinculados às mais renomadas e respeitadas universidades do país.
Na última segunda-feira (22), no entanto, o comandante da Marinha, Marcos Sampaio Olsen, criticou o Projeto de Lei, afirmando que o reconhecimento do militar qualificaria "reprovável exemplo de conduta" para os brasileiros.
Em vez de insurgir-se contra a história, pretendendo reescrevê-la segundo seus caprichos, a Marinha do Brasil e quiçá também o Exército Brasileiro, do qual as polícias militares figuram na Constituição como "forças auxiliares", deveriam aproveitar a oportunidade histórica, ainda que atrasadamente, para uma autocrítica relacionada sobretudo ao presente, mais do que ao passado: negar o racismo como ideologia significa autorizar que as chibatas e a selvageria dos algozes dos marinheiros negros sejam substituídas nos nossos dias por fuzis, cassetetes, tubos de gás de pimenta e tapas na cara com que tantos policiais militares coléricos tratam jovens negros pelo suposto delito de "serem negros".
A apologia ao esquecimento, como se vê, não é suficiente para apagar o protagonismo heroico dos oprimidos, mas pode ser devastadora no desmascaramento e desmoralização das instituições. Único Almirante Negro de que se tem notícia na Marinha Brasileira, João Cândido deve ser motivo de orgulho para a instituição, como o é para a história e a consciência democrática brasileiras.
*Hédio Silva Jr. é advogado, Mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP, fundador do JusRacial.
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