Opinião

Mulheres negras são as que mais defendem o bem comum nas cidades

Nesta data de celebração que deveria ser o 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, é urgente refletir sobre as relações coloniais que nós, enquanto sociedade, estabelecemos com o cuidado até hoje. No livro "Um Feminismo Decolonial", a francesa Françoise Vergès destaca que mulheres negras acordam para limpar o mundo e recorre às imagens de uma Paris que amanhece vazia durante a quarentena da covid-19, mas ainda assim recebe o cuidado e a limpeza de mulheres negras e de origem imigrante, que atravessam a cidade para serem domésticas de famílias ricas ou até mesmo para serem garis e zelarem pela própria cidade, enfrentando os riscos da pandemia.

Mas não é preciso recorrer a Paris quando lembramos que a primeira vítima fatal da pandemia, no Brasil, foi uma mulher negra, também trabalhadora doméstica, infectada pela patroa que se recusou a usar máscara mesmo com os sintomas da doença. Na Baixada Santista, também foram mulheres negras e periféricas que assumiram o cuidado de suas comunidades durante a emergência sanitária, seguindo um trabalho que já exerciam antes e exercem até hoje como lideranças e referências pelo cuidado ao que é comum entre os moradores: os direitos de ser e estar em comunidade.

Após a pandemia, achados nossos da pesquisa "Território e Comunidades da Baixada Santista" concretizaram em dados percepções que já temos a partir de três décadas de convívio e trabalho nas regiões mais periféricas do litoral sul paulista. Mulheres negras estão na liderança de 70% das 37 comunidades dos municípios de Santos, São Vicente, Guarujá, Cubatão e Peruíbe, na Baixada Santista (SP). Em sua maioria (61%) têm mais de 50 anos, e 96% não têm renda pessoal. Do total delas, 62% atuam há mais de 20 anos.

São resultados expressivos e urgentes para pensar a um contexto mais macro quando nos damos conta de que estamos observando uma das regiões econômicas mais importantes do país: a Baixada Santista sedia o principal polo marítimo do setor econômico do Brasil, o porto de Santos, que é o principal do hemisfério sul e o segundo da América Latina, superado apenas pelo Porto de Colón, na margem atlântica do Canal do Panamá.

Se na principal vitrine do comércio exterior brasileiro temos mulheres negras lutando por territórios inteiros, a realidade não vai ser muito distante em outras regiões do Brasil. No relatório "Construir caminhos, pactuando novos horizontes no Brasil do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento)", dados da ONU revelam que 60% da população mais desfavorecida depende de mulheres negras no país.

Em outro exemplo, no Rio Grande do Sul, observamos um grande mutirão construído pela sociedade civil. Entretanto, no dia a dia das mobilizações locais nas periferias, temos, em Bom Jesus, periferia de Porto Alegre onde atuamos com o projeto Bonja Viva, histórias de mulheres negras e periféricas como Danielle Boeira. Mesmo desempregada, a agente de saúde, ao lado de uma amiga, criou o projeto Costura do Bem, para pensar em corpos fora do padrão que não estavam recebendo roupas adequadas para suas necessidades.

Falta de acesso a recursos financeiros para manter associações comunitárias, falta de desmobilização da própria comunidade e falta de acesso a políticas públicas são desafios enfrentados por mulheres negras que lideram, mas são as que recebem por último qualquer forma de acesso a direitos.

Mesmo assim elas ainda marcham em experiências variadas de protagonismo comunitário e de trocas intergeracionais. O que conecta a experiência de Danielle no Rio Grande do Sul às mulheres negras da Baixada e de outras periferias Brasil e América latinocaribenha afora: a potência de transformar em comunidade.

Na última edição da Conferência Municipal das Cidades, em Santos, tivemos uma jovem mulher negra presidindo os trabalhos para o evento, ao mesmo tempo em que outras mulheres negras, de diversas idades, também estavam lá representando suas comunidades. Todas elas ali lembravam os impactos do acesso à moradia, à saúde e à educação para uma sociedade mais democrática, em que a participação social acontece a partir do momento em que há uma comunidade mais fortalecida para pensar em uma sociedade menos desigual.

Em ano de eleições municipais, é importante olhar para a base e pensar em estratégias efetivas pela inclusão e pelo fortalecimento de quem está cuidando pelo comum dos territórios até mesmo fora do período eleitoral.

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O IBGE destaca que as mulheres negras são as mais afetadas pelas desigualdades sociais, enquanto elas nos ensinam, todos os dias, a construir a transformação pela igualdade por uma perspectiva do bem viver, também disseminada por mulheres negras. Por esse olhar, o conhecimento comunitário, o diálogo e o cuidado são potências revolucionárias com as quais toda a sociedade ganha. É preciso cuidar desse legado e honrá-lo.

*Val Rocha é coordenadora institucional do Instituto Elos. Natasha Gabriel é arquiteta e diretora pedagógica do Instituto Elos. Vitoria Santos é líder comunitária e estudante de ciências sociais da Unicamp

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