Opinião

Se o futebol é coletivo, o futebol de mulheres é ainda mais

Começo este texto agradecendo as palavras de Jenni Hermoso após o sacode tomado contra a seleção brasileira na semifinal olímpica, na terça-feira (6). Depois da derrota, Hermoso disse que o Brasil não joga futebol. Não fosse a soberba da espanhola atual campeã da Copa do Mundo, talvez eu continuasse no silêncio sobre o futebol feminino.

Poderia passar muitas linhas só para 'explicar' a ela que a seleção feminina brasileira tem história e tem craques. Até por uma questão territorial, tem mais talentos que se escondem por aí e que, infelizmente, jamais se tornarão profissionais. Também temos nomes cravados na história do futebol. A título de exemplo ficarei somente em três: Sissi, Formiga e Marta.

Tanto quanto as futebolistas espanholas, as brasileiras vivem de travar batalhas por direitos, reconhecimento e justiça. Portanto, o nível do argumento usado por Jenni na derrota para a seleção brasileira não fica apenas na condição do jogo. O que foi dito confronta diretamente a digna, pois não fugiu à luta, história das mulheres do futebol brasileiro.

Desde a conquista da segunda medalha olímpica em Pequim 2008, muita coisa aconteceu. O futebol feminino enfrentou inúmeras batalhas em busca de um calendário mais organizado, espaço e respeito da mídia, atenção às categorias de base, condições adequadas de trabalho e um tratamento digno que inclua até mesmo uniformes apropriados.

Para a seleção de futebol de mulheres chegar a uma final olímpica como a de hoje, em Paris, muitas peças se movimentaram antes, dentro e fora de campo. E eu diria que a briga pesada mesmo, aquela, de peitar haters, pseudo amantes da modalidade e discursos absolutamente misóginos, fica sempre fora das quatro linhas.

Quando uma seleção feminina brasileira de futebol chega a uma final olímpica dentro das condições básicas e mínimas que foram conquistadas - sempre bom lembrar que "concessão" é a narrativa que tenta emplacar, é porque muitos personagens se movimentaram e deram a cara à tapa, propondo soluções e cobrando o que é de direito.

Há 16 anos tínhamos o Campeonato Paulista, já consolidado, e a Copa do Brasil com um ano de criação. Me refiro a São Paulo, onde sempre houve mais consistência no andamento da modalidade, sem desconsiderar os outros estados formadores. Foi sob este cenário precário que formou-se a seleção vice-campeã da Copa do Mundo em 2007 e a bi medalhista olímpica, com uma prata, em Pequim, no ano seguinte.

Já tínhamos Marta, Cristiane e Rosana. Era o time de Daniela Alves, Grazi, Ester, Maycon, Baiana, Bárbara e Andrea Suntaque, entre outras. Essas atletas ainda tiveram contato com a geração anterior, que contava com Juliana Cabral, Monica, Pretinha, Roseli, Kátia Cilene e Sissi. E dessas, muitas vieram da geração de 1980.

As condições para o futebol de mulheres naqueles dias eram praticamente insalubres. E sabem o que elas faziam? Arrepiavam. Literalmente contra tudo e contra todos, até os anos 2014, este grupo enfrentava desafios pesados para manter a bola no pé ou simplesmente sobreviverem longe do futebol. Sem contar as outras violências que precisavam enfrentar, todos os dias.

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A partir de 2015, outras vozes, outras letras e outras mentes se uniram para ampliar a linha de defesa do futebol feminino. A modalidade convocou mulheres para todas as posições e cada uma desempenhou, e ainda desempenha, papéis importantes neste pódio olímpico em Paris 2024.

Várias foram, e continuam a ser, as personagens que se movimentaram para levar o futebol feminino brasileiro ao lugar que está hoje: com campeonato transmitido na TV Aberta, competições bem definidas no calendário, ocupação dos espaços de gestão, ampliação de mulheres nos quadros técnicos e delegações. Muita gente se movimentou para produzir na cultura e na academia, com pesquisas e mobilização de espaços de cultura para dar conta de várias linguagens e narrativas.

Este pódio olímpico carrega, substancial e inequivocamente, todas nós. E não é exagero dizer que as lágrimas da ex-zagueira Juliana Cabral e da comentarista Ana Thais Matos ao final do jogo contra a Espanha, na terça-feira (6) merecem mais que empatia. A emoção de ambas deve servir como um plus na obsessão pelo ouro olímpico por essa nova geração de atletas. Sublinho: se o futebol é coletivo, o futebol de mulheres é mais. Por isso estamos no pódio novamente.

*Lu Castro é jornalista e pesquisadora das mulheres no esporte, graduanda em Análise e Desenvolvimento de Sistemas, coautora das publicações "Futebol Feminista" e da HQ "E a Boca do Luxo entra em campo".

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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