Masculinidades na urna: como 'ser homem' virou tema da eleição de São Paulo
Ao longo das últimas décadas, os debates em torno de gênero têm mobilizado a sociedade. Campanhas como #MeToo, #EuNãoMereçoSerEstuprada e documentários como "Chega de Fiu Fiu" defendem que as pessoas deveriam ter direitos e oportunidades equivalentes e pautaram a busca pela equidade. Ao mesmo tempo, setores conservadores acusaram essas iniciativas de ataques aos papéis tradicionais de homens e mulheres, e as classificaram como "ideologia de gênero".
O embate das masculinidades nas eleições paulistanas de 2024
Pois agora esses conflitos ganharam novos contornos e se manifestam em horário nobre na principal corrida eleitoral do país: a eleição municipal de São Paulo em 2024.
Semanas antes da cadeirada, a eleição paulistana já nos convidava a ter uma conversa urgente sobre masculinidades. Para além dos problemas recorrentes de pleitos em uma sociedade machista e racista — como a baixa presença das candidaturas de mulheres, apenas duas em 10, e ausência de candidatos negros —, os debates e as entrevistas dos políticos escancararam questões que, muitas vezes, estavam invisibilizadas ou limitadas às discussões sobre gênero.
Em 14 de agosto, Pablo Marçal (PRTB) e Guilherme Boulos (PSOL) se envolveram em uma discussão quando o ex-coach decidiu provocar o adversário chamando-o de "vagabundo" e mostrando ostensivamente uma carteira de trabalho. Embora Marçal tenha usado um documento emprestado durante o confronto e se recuse a mostrar a sua própria carteira, ele sabe bem com que público estava falando e o porquê. Na pesquisa de "O Silêncio dos Homens", projeto que coordenei em 2019, perguntamos aos homens quais foram as principais crenças que lhes foram ensinadas durante a infância e a adolescência. Duas das mais prevalentes diziam respeito ao trabalho:
Ser bem sucedido profissionalmente - 85%
Ser o responsável pelo sustento financeiro da família (provedor) - 67%
Marçal não apenas alimentou as ideias de que Boulos viveria de "invadir" propriedades alheias ou de que pessoas de esquerda não gostariam de trabalhar, mas mexeu com um valor central da visão de mundo das pessoas que constroem uma cidade que se orgulha de ser a capital financeira do país. O candidato psolista, por sua vez, usou outro lugar-comum das masculinidades para explicar a agressividade demonstrada ao tentar dar um tapa na mão do provocador: "Ninguém tem sangue de barata".
Estereótipos de gênero e a perpetuação do patriarcado na política
Dias depois, em 19 de agosto, o candidato voltou sua mira para Tabata Amaral (PSB). "Ela é uma mulher brilhante, é a que mais estuda aqui, tenho que assumir, estuda demais. Mas não tem marido, não tem filho, não tem problema, aí dá para estudar", disse Marçal. Ao se valer dos estereótipos de gênero para questionar a deputada, o ex-coach faz um aceno ao público conservador e repete um argumento que serviu de base para a campanha do ex-presidente Jair Bolsonaro em 2018: a defesa da família.
Na eleição americana atual, inclusive, o tema da ausência de filhos também tem sido utilizado para questionar candidatas. O candidato a vice na chapa republicana de Donald Trump, JD Vance, chegou a classificar a então vice-presidente Kamala Harris de "senhora com gatos e sem filhos", indicando que políticos assim não teriam compromisso com o bem-estar e o futuro das famílias.
A performance das masculinidades eleitorais chegou ao ápice no debate do dia 15 de setembro, promovido pela TV Cultura. Após trazer à tona um suposto caso de assédio envolvendo José Luiz Datena (PSDB), Marçal questionou diretamente a masculinidade do apresentador de 67 anos:
"(...) Você é um arregão. Você atravessou o debate esses dias para me dar tapa e falou que você queria ter feito. Você não é homem nem para fazer isso. Você não é homem". Datena respondeu com alguns dos únicos sentimentos que os homens demonstram ser fluentes em expressar: raiva e agressividade. Ou, materialmente falando, com uma cadeirada.
A urgente necessidade de debater masculinidades além dos clichês eleitorais
Todos esses acontecimentos em algumas semanas não são mera coincidência. São resultados manifestos de uma confluência construída paulatinamente ao longo das últimas décadas. Principalmente a partir dos anos 60 e 70, as mulheres brasileiras passaram a ocupar cada vez mais os bancos escolares, as faculdades e as atividades produtivas em espaços de trabalho fora de casa. Meu avô, pernambucano, não era feminista. Longe disso. Mesmo assim, minha mãe dizia ouvir: "Filha minha não vai depender de homem".
Ao mesmo tempo, enquanto começaram a sentir espaços que antes chamavam de seus não apenas serem questionados, mas diminuídos, os homens continuaram a ser criados para serem viris, no controle, competitivos, ousados, corajosos, fisicamente fortes, dominantes, que não desistem, não demonstram fraqueza, que aguentam o tranco. A conta não fecha e, com isso, essa ideia do que é ser homem passa a viver em crise.
O que estamos testemunhando é a tangibilização dessa disputa por espaço, que agora ultrapassa os lares, o mercado de trabalho e se manifesta de maneira inequívoca na política. De acordo com uma pesquisa feita pelo jornal britânico Financial Times, mulheres entre 18 e 30 anos são 25% mais progressistas do que os homens da mesma idade. Outro levantamento, feito nos Estados Unidos pelo Change Research, indicou que 58% das mulheres entre 18 e 34 anos se dizem politicamente progressistas ou liberais, em contraste com 37% dos homens.
Quando Boulos, Datena e Ricardo Nunes (MDB) aparecem de camisa social e blazer nas nossas telas, querem nos passar a imagem de que são homens brancos adultos, responsáveis, bem-sucedidos. Quando Marçal desafia esse status quo e insere um boné que se tornou campeão de vendas, ele usa um elemento urbano de identidade masculina para reforçar o papel de outsider político (recomendo a escuta da ótima entrevista da consultora de moda Thais Farage sobre esse assunto, no podcast Café da Manhã).
Faz parte do jogo. O problema, a meu ver, é que os debates e encenações têm se limitado às fórmulas e formatos, e sequer arranham alguns dos temas realmente urgentes sobre masculinidades.
Como esses candidatos vão combater o crescente índice de feminicídios na cidade? Têm alguma proposta para evitar as estatísticas de mortes no trânsito, composta em sua maioria por homens? Como vamos ensinar aos meninos e jovens de São Paulo que existem outros modelos de masculinidades possíveis?
A ausência de discussões sobre temas como masculinidades negras, de homens LGBTQIA+ ou de homens com deficiência em meio a uma série de reproduções do que há de mais hegemônico no patriarcado diz muito. Se as pautas não passarem rapidamente a endereçar temas que levem os homens a perceberem outras perspectivas e a se tornarem de fato aliados na busca por equidade de gênero, corremos o risco de popularizar as discussões sobre o masculino, sem de fato mudar os impactos produzidos pelos homens no mundo.
*Ismael dos Anjos é jornalista e mestre em fotografia, atua como consultor sobre masculinidades, equidade de gênero e raça. Cofundador do Instituto de Defesa da População Negra, coordenou o projeto "O Silêncio dos Homens", pesquisa e documentário que abordam as construções sociais dos homens no Brasil e dirigiu o premiado curta "Origens" para o UOL.
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