Mais conversas, menos telas: a saúde mental nas festas de fim de ano
A Microsoft realizou uma pesquisa em março de 2024 que apontou que o uso da inteligência artificial (IA) está cada vez mais presente em micro, pequenas e médias empresas. Os dados apontam que 74% das pessoas entrevistadas já fazem uso frequente da tecnologia enquanto 90% buscam formas de adotá-la. Mas o que estes assuntos têm a ver com o Natal e a saúde mental?
Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), o Brasil é o país com mais casos de ansiedade no mundo, com 9,3% da população sofrendo transtornos do tipo. É também o lugar que apresenta o maior número de casos de depressão da América Latina: cerca de 5,8% da população. Estes números vêm subindo ao longo dos anos, junto com o aumento do acesso e da capacidade de atuação das tecnologias e das inteligências artificiais e seu uso cada vez mais cedo na vida das pessoas.
Se por um lado ainda precisamos lidar com uma grande desigualdade social que impede o acesso integral a essas tecnologias a uma boa parcela da população, por outro contamos com crescentes exigências educacionais e do mercado de trabalho, que demandam conhecimento na área. Jovens precisam, cada vez mais, de apenas um smartphone com internet para realizar trabalhos escolares, trocar ideias com pessoas de qualquer lugar do mundo e se posicionar sobre as causas em que acreditam. E eles sentem cada vez menos necessidade de diálogos reais e presenciais, preferindo jogos online e conversas por mensagens rápidas.
As crianças fazem uso das telas cada vez mais cedo e, o que é mais importante, sem orientação e rotina. Já os adultos cada vez mais se sentem obrigados a estar conectados 24 horas por dia, sem poder desligar o smartphone em nenhum momento. Seguimos acompanhando gerações que precisam aprender a conviver com a tecnologia e outras para quem a tecnologia já é parte da vida.
Em ambas, percebemos um crescimento alarmante nos números de casos que envolvem alguma desordem da saúde mental, em especial ansiedade e depressão. Outro dado importante a ser considerado é o aumento de cerca de 15% nos atendimentos realizados pelo CVV (Centro de Valorização da Vida) no final do ano.
É a época do ano em que as pessoas vivenciam mais intensamente processos emocionais, muitas vezes amplificados por campanhas mercadológicas, e que aumentam os pedidos de ajuda. A obrigatoriedade das confraternizações e encontros presenciais, muitas vezes substituídos pelo on-line ao longo do ano, ganha força em um período marcado por um clima de renovação, mas que também carrega vivências nem sempre desejadas, como as festas corporativas ou os abraços e felicitações antes da ceia de meia-noite, provocando sentimentos conflitantes e desafiadores.
Você já parou para pensar quanto de carga emocional experimentamos neste período do ano, enquanto no restante dos meses vamos apenas evitando sentimentos e angústias, seja nas exposições selecionadas para as redes sociais ou no excesso de medicalização?
Entre o home office e a IA, temos cada vez menos momentos de trocas reais, sem selfies ou lindos pratos para o Instagram e sem as dancinhas coletivas que duram poucos segundos. O que acontece quando se aperta o botão desligar? Quanto nos sentimos seguros e aceitos no grande número de eventos sociais que muitas vezes as convenções sociais não permitem recusa? Será que a juventude de hoje deseja cumprir todos os rituais de final de ano?
Rituais que muitas vezes não fazem sentido para quem, durante todo ano, socializa com familiares e amigos por meio de telas e curtidas. As mudanças do século 21 exigem de nós muito mais que aprendizados tecnológicos, mas um resgate de nossas histórias e daquilo que faz sentido no encontro de gerações. Para isso precisamos encontrar momentos de respiro fora das redes sociais.
Quando foi a última vez que almoçamos sem mexer no celular? Que conversamos com o filho adolescente sem precisar correr para próxima reunião na mesa do lado? Quando foi a última vez que brincamos na areia do parque com filhos, sobrinhos, netos em um dia qualquer no meio da semana? A tecnologia deveria nos permitir mais tempo para todas essas coisas, mas empurrou nosso tempo para mais trabalho. E o trabalho invadiu as nossas casas e vidas em uma era de grandes inseguranças profissionais e financeiras: a era dos trabalhos informais.
A necessidade de uma conexão ininterrupta, de uma produtividade que só aumenta, nos permite cada vez menos tempo para sentir, para viver momentos necessários de conexão e reflexão pessoal. Assim, vamos suprimindo as emoções, que acabam por transbordar nas faltas ou nos excessos, na depressão ou ansiedade. E, por vezes, em ambos.
Sem saber como lidar com tantos sentimentos, a indústria farmacêutica segue produzindo comprimidos para um não sentir. Claro que há casos de ansiedade e depressão que envolvem uma disfunção neurobiológica, mas estamos nos acostumando a não ter tempo para descobrir as causas. A lógica de hoje é: preciso acabar com os sintomas para produzir, cada vez mais.
As novas gerações cada vez mais se expressam pela arte e cada vez menos conseguem colocar os sentimentos em uma conversa direta. Não há equilíbrio, é preciso parar para ouvir e para aprender a falar. Façamos então um exercício de final de ano. Que possam aprender a ouvir, os que sabiam falar em conversas na calçada, em reuniões na sala de casa, antes da chegada da TV. E que possam aprender a falar por horas aqueles que já nasceram precisando se expressar em 140 caracteres e em vídeos de menos de um minuto. Que seja um final de ano com mais conversas, nas calçadas, ruas, restaurantes, cafés, bares e praias e com menos poses para telas vazias.
Procure ajuda
Caso você tenha pensamentos suicidas, procure ajuda especializada como o CVV e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade.
O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por email, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil. Leia mais.
*Regiane Souza, é especialista em Educação, Diversidade e Sociedade, e mestre em Ciências pela EACH-USP, membro do Núcleo AOTA, e se dedica à pesquisa e criação audiovisual periférica a partir de temáticas sociais.
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