Racismo ambiental é sobre quem vai ter um lugar no futuro
Na última quarta-feira (4), completou-se um ano sem Antônio Bispo dos Santos, o Nego Bispo, quilombola, pensador, escritor e referência na defesa por justiça social, racial e ambiental no Brasil. Nascido no Quilombo Saco-Curtume, no Piauí, Bispo ancestralizou aos 63 anos, mas sua obra e ensinamentos permanecem como farol para as lutas do presente e as utopias de futuros possíveis. Nesta terça-feira (10), o mestre faria 64 anos.
O compromisso de Bispo com os saberes ancestrais ia muito além da preservação: ele buscava renovar esses conhecimentos, conectando-os aos desafios contemporâneos e engajando as juventudes para caminharem juntas na construção de uma nova civilização. Seu discurso era claro e cortante: não há como falar de justiça climática sem enfrentar o racismo ambiental.
Para Nego Bispo, o território quilombola era mais do que espaço físico; era também um espaço de pensamento, resistência e reinvenção do futuro. Ele acreditava que jovens quilombolas, indígenas, ribeirinhos e periféricos carregam não apenas o peso das desigualdades históricas, mas também o poder da ação coletiva.
E o racismo ambiental vem para evidenciar como essas populações são as primeiras a sofrerem com a degradação ambiental - seja pela poluição industrial, pela devastação de territórios ou pela ausência de políticas públicas. Por esse motivo, o futuro precisa ser reconstruído com os pés no chão da história, com o olhar atento aos nossos.
Durante a COP29, realizada no mês de novembro em Baku, no Azerbaijão, a COP das Baixadas, um coletivo de jovens quilombolas, indígenas e periféricos, levou a pauta do racismo ambiental para o centro das discussões globais. Lideranças emergentes e outros ativistas deram visibilidade às injustiças climáticas enfrentadas pelas periferias urbanas e comunidades tradicionais brasileiras, denunciando como as mudanças climáticas não afetam todos de forma igual.
Em 2025, a COP30 será realizada em Belém, no coração da Amazônia e há uma grande expectativa sobre como essas vozes serão amplificadas. Não se trata apenas de uma oportunidade para falar sobre as ameaças enfrentadas pela floresta e seus povos; trata-se de um marco histórico para mostrar que o enfrentamento à crise climática global só terá sentido se incluir os saberes e as demandas das populações que vivem na linha de frente da crise. O que faremos depois da 'COP das COPs'?
Os dados do Censo 2022, analisados pela Conectas Direitos Humanos, apresentam números que escancaram a realidade do racismo ambiental no país. Segundo o levantamento, as populações negras e indígenas continuam desproporcionalmente expostas aos impactos ambientais mais severos. Faltam saneamento básico, infraestrutura e acesso a serviços essenciais, mas sobram riscos como enchentes, deslizamentos de terra e poluição industrial.
Um exemplo é a distribuição de saneamento básico: nas áreas habitadas majoritariamente por brancos, o acesso chega a 94%, enquanto nas periferias e zonas rurais - onde predominam comunidades negras e indígenas - esse número cai drasticamente. Além disso, 75% das áreas urbanas de maior risco ambiental no país são ocupadas por famílias negras.
As crises ambientais também impactam a saúde da população de forma desproporcional, sendo as comunidades negras, indígenas e os povos tradicionais os mais afetados - a constatação está no boletim divulgado recentemente pelo CBJC (Centro Brasileiro de Justiça Climática) em parceria com o Ministério da Saúde. Esses dados reforçam uma percepção que Nego Bispo sempre verbalizou: o racismo ambiental não é apenas sobre o meio ambiente, mas sobre a própria estrutura desigual que define quem vive e quem morre.
Se os dados expõem a violência estrutural, a resistência das comunidades quilombolas é, por si só, um grito de sobrevivência e uma aula de como viver em harmonia com a natureza. Nas palavras de Nego Bispo, os territórios quilombolas são "universidades vivas". Essa resistência tem um rosto marcante: o das mulheres.
A publicação da Escola de Ativismo "Ativismo ancestral: identidade, autocuidado e educação são bases da resistência das mulheres quilombolas" mostra como as práticas de autocuidado, organização comunitária e preservação dos modos de vida tradicionais são estratégias fundamentais para enfrentar o racismo ambiental e as desigualdades de gênero.
As mulheres quilombolas lideram processos de educação nas comunidades, cuidam da terra, protegem as tradições e constroem redes de apoio que vão além da sobrevivência. Essa resistência diária é a base para entender que a luta contra o racismo ambiental também passa pela preservação da cultura e da memória coletiva.
O legado de Nego Bispo não se encerra em sua ausência. Ele resiste em cada jovem que hoje ocupa espaços de fala nas conferências internacionais, em cada mulher quilombola que preserva sua ancestralidade e em cada território que resiste. A juventude segue na construção de um projeto de futuro que, como Bispo sonhou, reconhece a importância do passado para criar algo verdadeiramente novo.
Com a COP30 em Belém, que acontece ano que vem, temos uma chance histórica de transformar os debates climáticos globais em algo mais inclusivo e efetivo. Não será fácil, mas seguindo o pensamento de Nego Bispo, se a terra pode se reinventar, nós também podemos. É com essa inspiração que as juventudes quilombolas, indígenas e periféricas seguem construindo seus futuros possíveis, de mãos dadas com as lições deixadas por aqueles que vieram antes.
*Gabi Coelho, coordenadora de comunicação e estratégia do Instituto Toriba, é jornalista independente, diretora da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), empreendedora, conselheira da Inova.aê e antropóloga em formação.
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