Enquanto dure o tempo-criança
Com a virada do calendário, de uma forma ou de outra surgem expectativas de mudanças, mesmo que a marca do ano novo gregoriano nada mais seja do que um modelo de contagem, exportado ao mundo pela Europa oficialmente em 1582. É inegável como as possibilidades do novo despertam na psique humana infinitos movimentos.
Muitas vezes, no entanto, a lista de resoluções tende a repetir os anos anteriores, não considera os desafios e esforços necessários para realizá-los. Seria mais como uma lista de desejos e a expectativa de que milagres aconteçam por forças divinas.
O ano novo é um ritual e, como tal, tem o objetivo de ajudar a suportar as dores e delícias do presente. Importante para a subjetividade, não pode porém nos descolar da realidade, criando uma renovação ficcional para fugir e nos esconder dos problemas. Como bem diz Maria Homem em entrevista recente: "a negação é um mecanismo, mas que pressupõe um custo. Quando se corta a conexão com o real é porque há muito sofrimento."
A concepção de tempo, assim como de um novo ano, marcado pela passagem de 365 dias, é muito abstrata para uma criança, como também sua relação com essa duração relativizada das coisas, entre presente, passado e futuro.
Em seus primeiros 6 meses, um bebê precisa dar ordem ao caos fora da barriga da mãe. A previsibilidade ajuda os ritmos naturais dos corpos a tomarem forma, padrões de pessoas, coisas e eventos vão formando uma base para sua compreensão da realidade. Até seus dois anos, o tempo é algo ilimitado para eles, crianças sempre têm muita disponibilidade e adultos nunca o suficiente.
Conceitos sobre depois, durante ou antes são marcadores do tempo, que surgem por volta dos 3 e 4 anos e se relacionam com as atividades cotidianas, desde as mais simples, como lavar à mão antes do almoço, também tirar uma soneca ou estabelecer um tempo para brincadeiras. Os aniversários são datas festivas esperadas e ajudam a construir a noção infantil do tempo.
Cada uma de sua forma própria, as crianças vão aos poucos se entendendo no nosso tempo. Enquanto isso, não é incomum durante toda a primeira infância ouvir frases como: "Vamos visitar a vovó ontem.".
O que 2020 nos relembrou é sobre nossa suscetibilidade aos imprevistos do mundo, como as soluções muitas vezes fogem ao nosso alcance e à singela listinha de desejos. Neste sentido, crianças podem contribuir muito com sua concepção do tempo, onde o agora é o mais valioso, considerando que o passado e o futuro são desconhecidos e fogem de seus vocabulários. Uma marca são os verbos, por vezes conjugados erroneamente no presente.
Aos adultos cabe ajudá-los a entender a importância da paciência, já que viver no presente também gera ansiedades do agora imediato, o que muitas vezes se traduz em uma dificuldade em aceitar a necessidade da espera e do compartilhar.
A pandemia nos trouxe um aprendizado semelhante ao que os pequenos usam para perceber o tempo, aquele que diz que você precisa de tempo para entender o tempo. A redundância faz muito sentido no momento em que vivemos, onde vamos precisar de ainda longos momentos para digerir tudo que estamos passando, culpando ou não a pandemia pelos traumas, perdas, separações e violências sofridas. Por outro lado, também entendendo como ela traz reflexões sobre a maneira que vivemos, como estamos ocupando as cidades e interagindo entre si.
Com a relativização radical do tempo-pandemia, tanto pela repetição de atividades dentro da mesma rotina, fazendo com que dias e meses se pareçam e se fundam em um aglomerado de tempo, como pela falta de marcadores de tempo costumeiros, como eventos, aniversários, novos trabalhos, talvez esteja apresentada uma oportunidade para nos conectarmos à outros tempos.
O tempo das plantas, dos animais, os tempos lunares e outros ciclos muitas vezes desprezados em nome de uma suposta eficiência desenvolvimentista do antropoceno. Não seriam estes tempos também uma maneira mais interessante para o aprendizado das crianças, para que entendam as diferenças entre dia e noite, entre as estações do ano e seus fenômenos, sobre os funcionamentos da natureza e da vida social?
Além de demarcações mais naturais do que são as horas, minutos e anos de um calendário anual definido artificialmente em números, as marcações temporais infantis nos lembram das coisas mais singelas e importantes da vida, como são os ritmos próprios da natureza.
Se 2021 é outro ano, o desafio da contabilização do tempo pouco se alterou com o brinde de Réveillon. A marcação temporal permanece pouco representativa da nossa experiência humana e, à espera da vacina, nunca foi um cálculo tão angustiante.
Quem sabe possamos aproveitar essa parada obrigatória que o momento nos impõe para considerar outros nortes, exercitar outros tempos?
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