Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Idosos vacinados, crianças no fim da fila: angústia familiar muda de foco?
As novas variantes da covid-19 estão mudando a lógica de combate à pandemia e a preocupação de governos e países em todo o mundo. A capacidade de contaminação, que parecia indicar uma prevalência muito baixa entre crianças e os mais jovens, agora gera dúvidas na sociedade e põe especialistas à prova.
Quando finalmente parecia que as crianças poderiam voltar às escolas de forma razoavelmente segura, o recrudescimento da pandemia voltou a tensionar a relação das instituições de ensino com os governos, mas também com os cuidadores e profissionais da educação. Ao longo das últimas semanas, a Justiça foi acionada em diversos locais do Brasil para decidir sobre a possibilidade ou não de retorno às aulas presenciais.
Considerando o avanço na vacinação de idosos e vulneráveis, fomos pegos de surpresa (talvez estivéssemos muito esperançosos?) com o descontrole da pandemia em todas as regiões do país e a disseminação das novas variantes. Sem planejamento e gestão, a fada da vacina não bateu à porta do Brasil.
Diversos países já assistem à queda no número de internações e óbitos com o avanço das campanhas de vacinação pelo mundo, e exemplos como a Alemanha indicam que o retorno presencial às salas de aula pode estar caminhando para a normalidade. Assim fica inevitável pensar na situação das crianças brasileiras, e mesmo aqueles que defenderam com veemência o retorno presencial agora se questionam sobre a segurança nas escolas.
Mas afinal, quando nossas crianças serão vacinadas? Se não há perspectiva no horizonte para a vacinação dos mais jovens, estaremos tranquilos somente quando todos os adultos e idosos estiverem imunizados?
Com essa incerteza e muitas perguntas, abordamos o pediatra Daniel Becker. Professor da UFRJ, mestre em Saúde Pública pela Fiocruz, foi o primeiro brasileiro a trabalhar com os Médicos sem Fronteiras (1988) e um dos criadores da Estratégia Saúde da Família, o maior programa do SUS. Atuou por 20 anos em comunidades populares com o CEDAPS, ONG que fundou e dirigiu. É colaborador do UNICEF e da OMS e um dos pioneiros no conceito de pediatria integral no Brasil.
Sabemos que, por diversas razões, as crianças não são prioridades no calendário de vacinação. Qual sua opinião sobre isso?
As crianças não são grupo prioritário especificamente para a vacina do coronavírus, uma exceção em relação a todas as outras doenças. Elas são menos suscetíveis à covid-19 e, quando infectadas, costumam desenvolver a doença com menor gravidade, felizmente. Caso contrário, a pandemia teria sido ainda mais trágica no Brasil. A questão é que a gente não deve se preocupar em vacinar crianças em prioridade. Por ter poucas vacinas, é claro que as crianças vão ficar por último e realmente não existe outro caminho, é preciso priorizar.
Se as vacinas são escassas e se devemos priorizar os grupos de maior risco, como proteger nossas crianças, uma vez que os casos de covid nos pequenos têm aumentado?
Quanto à proteção das crianças, ela é igual à dos adultos. Elas precisam estar em dia com as novas regras de convívio, usar máscara sempre que puderem, sair ao ar livre sem aglomerar, só entrar em locais fechados quando estritamente necessário, usar álcool em gel etc. As crianças precisam socializar, e eu tenho recomendado que saiam ao ar livre e encontrem um ou dois amiguinhos, de famílias conhecidas e que estejam compartilhando o hábito da quarentena. Assim se garante não só a proteção delas contra a infecção, mas também a saúde física e emocional, que anda muito abalada por conta da quarentena prolongada, a falta de escola, a falta de tempo dos pais e o excesso de tela. Todas estas circunstâncias devem ser levadas em conta.
Nesse contexto, vivemos hoje uma inversão nas preocupações - se antes o cuidado maior era com os idosos, hoje a população mais jovem é o alvo. No caso das crianças, há motivo para tanta preocupação de fato?
O outono e o inverno são as épocas de sazonalidade das viroses respiratórias, então espera-se que o coronavírus vá aumentar nessa época. Por outro lado, outras viroses devem aparecer com menor frequência, justamente pelo uso de máscara, e todas as medidas de proteção contra a pandemia. A bronquiolite, por exemplo, está crescendo muito nos hospitais, estamos vendo muitos casos desta doença que pode ser perigosa, e tem que ser acompanhada com cuidado em crianças. Outras doenças, como a influenza, também são importantes. Quanto ao coronavírus, continuamos na mesma perspectiva: mesmo com o aumento de casos não há demonstração certa de que eles são mais graves em crianças, a doença continua sendo menos grave e menos frequente do que em adultos. Há motivo para preocupação sim, mas não para desespero. Mesmo com as novas variantes estaremos seguros, contanto que cuidemos da transmissão delas.
As aulas presenciais estão suspensas na quase totalidade do país. Qual sua opinião sobre o retorno presencial às escolas?
Nós já estamos em campanha desde novembro do ano passado para que as escolas estivessem preparadas para a volta às aulas neste ano, especialmente as públicas, que ficaram paradas durante todo 2020. Houve uma inversão de prioridades horrenda no Brasil, fazendo com que as escolas ficassem fechadas o ano todo, enquanto serviços como bares e restaurantes ficassem abertos. Uma coisa absurda e um crime contra as crianças da nossa sociedade.
Do ponto de vista comportamental, psicológico, como o senhor tem aconselhado as famílias a lidarem com a pandemia e, principalmente, com o isolamento das crianças?
Acredito que a natureza seja a solução, levá-las ao ar livre que é uma necessidade infantil, deixá-las brincar livremente, especialmente em locais com árvores, pracinhas, parques, onde possam correr, brincar com as formiguinhas, pisar na lama. Em casa é importante evitar o consumo de alimentos ultra processados, que está disparando na pandemia, e priorizar a alimentação natural. E claro, reduzir as telas. A gente sabe que os pais estão sobrecarregados, não podemos apontar o dedo para eles, mas tem havido excessos absurdos no uso de TV, computadores, celulares.
Por fim, quais seriam os erros e acertos da volta às aulas? O senhor acredita que o sistema público tenha condições de se adaptar à nova realidade?
A ciência provou ao longo do ano que as escolas são seguras, muitos países começaram a abrir escolas e diversos estudos demonstraram que as aulas presenciais não oferecem fonte significativa de transmissão comunitária. Os surtos escolares foram raros, normalmente trazidos por adultos, mas o ambiente escolar vai refletir a comunidade. A escola fechada não melhora a epidemia e a escola aberta não piora a pandemia - é um contexto que reflete o que está acontecendo lá fora. Não tem lógica ter salão de cabeleireiro, academia de ginástica, festa ou bar aberto, mesmo com horário e número de pessoas limitado, e manter escolas fechadas. Claro que em situações de colapso como muitas cidades estão vivendo no Brasil, escolas devem ser fechadas. Mas não antes de bares, restaurantes e igrejas, por exemplo, que são super-disseminadores
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