Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Assistência com participação social? Conheça o "Famílias Acolhedoras"
A complexidade das políticas públicas em um país continental e heterogêneo como o Brasil impõe aos gestores uma dose extra de criatividade, abordagens diferentes e muita inovação por parte do Estado. Contra a própria efetividade, os governos enfrentam a própria burocracia e a escassez de toda forma de recursos. Nos assuntos relacionados à primeira infância, os desafios se multiplicam e afloram subjetividades, facilmente borradas pelas generalizações a que se obriga uma legislação ou programa social.
Conversamos com a Dra. Jane Valente sobre o Serviço Famílias Acolhedoras, que garante a crianças em vulnerabilidade social um ambiente familiar em períodos de transição. Além de envolver a sociedade civil em serviços de âmbito social e local, a iniciativa provoca impactos sociais diretos.
Doutora em Serviço Social pela PUC São Paulo e especialista em Violência Doméstica contra a Criança e o Adolescente pelo LACRI USP, ela foi Secretária Municipal de Assistência Social e Segurança Alimentar da Prefeitura de Campinas (SP) entre 2013 e 2017. Atualmente, coordena o Plano Municipal pela Primeira Infância da cidade.
Se alguns desafios, principalmente legais, já foram vencidos para a operacionalização do serviço de famílias acolhedoras no Brasil, ele ainda não consegue inverter a lógica da institucionalização de crianças e adolescentes em nosso país. "É muito comum a confusão no senso comum da sociedade, mas também entre profissionais que atuam na proteção integral de crianças e adolescentes, apesar de já termos pesquisas científicas que há décadas demonstram os benefícios do cuidado e da proteção de crianças e adolescentes na família e na comunidade, principalmente na primeira infância", reforça Valente.
Por outro lado, uma ausência de discussões permanentes e organizadas sobre o tema afasta a sociedade de um entendimento sobre a diferenciação das ações de proteção em abrigos, de serviços de família acolhedora, de guarda na própria família e até mesmo da adoção. Mas, afinal, como funciona esse serviço?
A Política Nacional de Assistência Social (PNAS 2004) determina dentro da Proteção Social Especial de Alta Complexidade - serviços que garantem proteção integral [...] para famílias e indivíduos que se encontram sem referência e, ou, em situação de ameaça, necessitando ser retirados de seu núcleo familiar e, ou comunitário - a implantação de serviços, entre eles, o Serviço de Famílias Acolhedoras.
Segundo Jane Valente, o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC 2006) enfatiza que essas ações devem atuar em contínua articulação com os demais serviços que compõem as Políticas Públicas e a Justiça da Infância e da Juventude, no sentido de oferecer a proteção integral às crianças e adolescentes e o retorno mais breve possível à família de origem. E que, nestes casos, a adoção seja medida excepcional.
"As ações de proteção da criança e do adolescente em medida protetiva, nesse serviço, acontecem em espaço físico privativo de uma família que não é do convívio deles. As crianças e os adolescentes acolhidos são sujeitos de cuidados e convivem com as regras próprias da dinâmica daquela família - com a especial sutileza de incluir as necessidades de cada um - e oferecendo a eles, nesse momento especial de suas vidas, o direito à convivência familiar e comunitária, de forma protegida", reforça Valente.
Essa medida protetiva tem importantes diferenças legais em relação à adoção. Embora ambos ofereçam a proteção integral em ambiente familiar e comunitário, na adoção a transferência dos direitos parentais é total e irrevogável, enquanto no serviço de famílias acolhedoras a transferência dos deveres e direitos da família de origem é temporária. Não há substituição, mas parceria e colaboração, onde é preservada a identidade, os vínculos e a história da criança.
O sistema pode ser implantado tanto em cidades de grande e médio porte, quanto em metrópoles, coexistindo com instituições de abrigo. As experiências diferem de uma cidade para outra, atendendo às necessidades e características locais e regionais e de acordo com os mecanismos facilitadores e/ou dificultadores existentes.
"O Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora carrega em si uma proposta inovadora, que inclui a escuta e o envolvimento das crianças, adolescentes e seus familiares em toda a metodologia de trabalho. Um plano de atendimento garante a corresponsabilidade das políticas públicas para cumprir o que é garantido no ECA sempre levando em conta o maior interesse da criança e do adolescente", defende a assistente social.
O amadurecimento, por meio das ações cotidianas teórico-práticas hoje, assume um lugar de entendimento que essa política pública não chega com a pretensão de "fechar os abrigos" e nem de oferecer discussões que desmerecem suas ações. Até mesmo porque o ECA já propõe para o acolhimento institucional, há mais de trinta anos, um atendimento humano dentro de uma rede de proteção.
O que podemos esperar é um maior empenho no reordenamento de ações que possam atingir números de serviços mais compatíveis à necessidade prioritária do direito de crianças e adolescentes, sob medida protetiva, viverem em família e na comunidade. Os próprios números mostram que os Serviços de Acolhimento em Família Acolhedora não representam nem mesmo 5% do atendimento em relação ao acolhimento institucional no Brasil (abrigo e casas lares), que atendem cerca de 32 mil crianças e adolescentes.
Essa política pública, alinhada a estudos mundiais, já mostra resultados claros em muitos outros países, especialmente na Europa, onde mais de 90% das crianças e adolescentes estão protegidos em famílias acolhedoras quando existe a necessidade de serem afastados de suas famílias. Seria este um bom exemplo, uma inspiração para o Brasil?
"É nítida a necessidade de maior investimento em Serviços de Famílias Acolhedoras, por parte dos legisladores e executores das políticas públicas, como mais uma possibilidade de garantia da convivência familiar e comunitária, oferecendo trabalho prioritário às crianças e adolescentes e suas famílias de origem", amarra a Dra Jane Valente.
Carol Guimarães estará distantes nos próximos meses vivenciando, agora na prática, a primeira infância na cidade durante sua licença-maternidade
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