Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Quando a primeira infância entra na conta
O desafio da integração é antigo e bem conhecido da gestão pública. Muito se fala sobre o desperdício de recursos humanos e financeiros por falta da tal transversalidade, com as áreas separadas em 'caixinhas' autônomas e que pouco conversam entre si. Da mesma forma, o regramento orçamentário no Brasil foi pensado para proteger as áreas, garantindo investimentos em saúde, educação e assistência, mas criando "feudos" temáticos que dificultam o trabalho conjunto e focado no público-alvo.
"O problema de origem do orçamento brasileiro é a impessoalidade", afirmou em conversa com esta coluna a professora e pesquisadora nos temas de orçamento e financiamento público Úrsula Peres. Professora doutora da EACH/USP desde 2008, é pesquisadora associada ao Centro de Estudos da Metrópole - CEM/USP e membro do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo - IEA/USP.
"Quando eu falo que o orçamento é impessoal, quero dizer que ele não vai conseguir focar nas crianças mais necessitadas. Em um país tão heterogêneo e desigual como o Brasil, acabamos criando um problema de acesso aos públicos desassistidos, tanto pela questão de racismo estrutural quanto pelo enfoque na primeira infância, mulheres e outros grupos que deveriam ser prioridade", completa ela.
Mas não é obrigatório que seja assim, e já existem modelos para repensar o ordenamento orçamentário de forma a melhor acolher a diversidade da população. Na Austrália, um sistema foi desenvolvido para identificar mulheres e populações originárias no orçamento público.
Quando falamos de integração, os estados também têm papel fundamental no atendimento pleno da população, especialmente na implementação de infraestrutura urbana adequada e com um olhar para a infância. Para garantir o acesso pleno aos serviços de que precisa para se desenvolver plenamente, as crianças precisam antes de moradia adequada e saneamento básico completo. A dependência financeira dos municípios e o papel de coordenação dos entes federativos também é um complicador, mas exemplos como Ceará e Pernambuco também podem ser fontes de inspiração.
Com a obrigação constitucional dos municípios em ofertar grande parte dos serviços públicos, afinal é nas cidades que estão as crianças e famílias, são eles também os responsáveis pelos principais gastos na atenção à saúde, no ensino infantil e no atendimento de famílias no Cras (Centro de Referência da Assistência Social). Basicamente, cabe aos prefeitos atender às demandas da primeira infância e sem deixar ninguém para trás.
Úrsula defende que, mesmo já havendo uma previsão constitucional para os gastos em Saúde, Educação e Assistência Social, por exemplo, ainda cabe aos gestores locais atender às especificidades de cada cidade. "É importante a gente ter a dimensão de que o país tem mais de 5 mil municípios heterogêneos. Na hora da aplicação do recurso certamente haverá distinções. O município tem autonomia contratual e administrativa para, dentro das regras constitucionais, chegar a resultados melhores ou piores. O que a gente precisa é transparência total para eu saber o que está sendo feito e como o dinheiro está sendo aplicado", esclarece.
A conversa com Úrsula Peres deixa claro que transparência, integração e transversalidade são a chave para uma gestão eficaz do dinheiro público. Mas como isso é possível na prática? "Há, sim, formas e tecnologias suficientes para ajustar o orçamento com esse foco. Porém, mais do que leis e procedimentos administrativos, é preciso que as pessoas deixem seus feudos, trabalhem em conjunto para atender seus públicos e, ao fim, se convençam da necessidade e da importância de todo o processo", acredita.
Com a conscientização das estruturas burocráticas, a integração dos processos orçamentários poderá ser mais fluida e natural. No universo da primeira infância, a transversalidade é imperativa para garantir que nenhum serviço falte durante este período tão importante da formação humana. Mais do que isso, o orçamento pode ser a chave para a transformação social e uma redução definitiva das desigualdades.
"Acredito muito que esse investimento é fundamental para amenizarmos nossa raiz racista. Temos um racismo estrutural que não será erradicado se não começarmos desde a primeira infância. Com uma focalização por equidade, priorizando as crianças que mais precisam. A primeira infância é o nosso espaço de construção de um futuro de tolerância, de respeito e admiração", completa a professora. O desafio é imenso, mas os caminhos da mudança estão abertos.
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