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Rodrigo Ratier

Mais que combater fake news, é preciso lutar contra a manipulação emocional

24/08/2020 04h00

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Email inválido

"Morreram mais pessoas no Brasil em 2019 do que em 2020", recebi por WhatsApp de diversas pessoas próximas. Eu já conhecia a história. Pesquiso grupos bolsonaristas no aplicativo e vi circular o argumento de que os cartórios haviam registrado menos óbitos em plena pandemia do que em um ano normal. O subtexto, evidente, é o negacionismo: os números da covid-19 estariam inflados.

A informação é falsa. A agência de checagem Aos Fatos indicou a distorção. O Registro Civil já havia apontado, entre março e julho de 2020, 63 mil mortes a mais do que no mesmo período do ano passado. Na mesma fonte, o número de mortes por covid-19 era de 95 mil. Um total bem próximo da contagem oficial. As diferenças para menos se justificam porque a plataforma pode levar meses para ter dados mais atualizados.

Para as pessoas que me enviaram a notícia falsa, o desmentido estava ao alcance de um clique. Bastava ir ao Google e digitar o título da postagem acompanhado das palavras "boato" ou "checagem" para refutar o engodo. Assim é com boa parte das fake news circulantes hoje em dia: já existe um grande acervo, em contínua expansão, com verificações confiáveis realizadas por profissionais.

Checar autoria, data, origem da informação, atentar para a credibilidade das fontes e da própria publicação. Tenho certeza que meus interlocutores, todos com ensino superior, alguns com diversas especializações, já soubessem de todo o protocolo para evitar a desinformação. a recusa não tem relação com a educação formal: muitos já me encaminharam fake news antes, e voltarão, num futuro próximo, a fazer o mesmo.

É conhecida a definição do dicionário Oxford para pós-verdade, palavra do ano em 2016: contexto em que as crenças importam mais do que os fatos. De tão repetida, tornou-se paisagem, e suspeito que não estejamos considerando o alcance desse novo normal no universo da comunicação. Tentamos combater o problema da desinformação com conhecimento cognitivo sobre o tema, em ações quase sempre esparsas. Em sentido contrário, há uma avalanche ininterrupta de conteúdo enviesado ou francamente falso, apostando no pânico, colocando à prova as tais "competências midiáticas".

É um massacre. Para atualizar uma metáfora embolorada, estamos enxugando gelo em um forno a 250 ?C. Há farta documentação sobre o papel do envolvimento emocional em fenômenos como o negacionismo, a adesão cega a algum político, o engajamento em campanhas de destruição de reputação. No entanto, insistimos em tratar a questão como algo puramente racional — e tome conhecimento cognitivo para lutar contra algo que é, muitas vezes, da ordem do inconsciente. É como se estivéssemos combatendo o coronavírus com cloroquina. Não funciona.

É preciso mudar de estratégia. Sobretudo em mídias como o WhatsApp, é difícil manter um mínimo de sanidade mental. Tenho um smartfone específico para os grupos que monitoro. Exceto nos momentos de coleta de informação para pesquisa, o aparelho fica desligado. Meu humor se altera de forma muito perceptível no contato com as postagens, que seguem o padrão básico de defesa inconteste do presidente, ataque aos inimigos — com estridência, informações distorcidas, mentiras. Vale tudo: são inimigos e não adversários. São uma ameaça e, portanto, precisam ser eliminados.

É uma comunicação que passa ao largo da racionalidade. Ao contrário, tem foco na mobilização de afetos. O medo e o ódio são os mais prevalentes. As táticas discursivas são semelhantes a utilizadas em momentos históricos de escalada autoritária no século passado. Reler o clássico Psicologia de Massas do Fascismo, do psicanalista austríaco Wilhelm Reich, é um exercício de espelhamento do manual cotidiano de manipulação da extrema-direita.

Falo em manipulação, palavra desgastada no campo da comunicação, porque é o caso de recuperá-la. A captura emocional tem levado largos grupos sociais a serem "moldados com a mão", para relembrar esse significado concreto da palavra, instrumentalizados segundo os interesses de quem os manipula. Parece contraditório que uma relação do tipo estímulo-resposta tenha se estabelecido justamente em um momento de aparente democratização na produção e disseminação da informação. Mas é forçoso reconhecê-lo — ainda que as pessoas não se sintam manipuladas e, sim, "lutando contra o sistema", "desvendando conspirações ocultas", disseminando testemunhos que desmentem "tudo isso que está aí".

De uma perspectiva otimista, pode-se imaginar que ainda estamos em uma espécie de infância-adolescência das mídias sociais e que no futuro saberemos usá-las com mais sabedoria — sobretudo, mais autonomia. Há relativo consenso de que fake news, negacionismos de diversas ordens e populismo digital são condições estruturais e não episódicas. Ou seja, vão nos acompanhar por algum tempo. A questão é o que a educação pode fazer para ajudar a abreviar esse período. Olhar para o que hoje se chama de "habilidades socioemocionais" parece ser uma chave importante, com o cultivo do ceticismo, a busca da objetividade possível, aprender a enxergar as emoções de uma perspectiva contemplativa em vez de se deixar levar por elas.

Trata-se de construção de longo prazo e nada trivial. Como convidar amigos para um processo de autoconhecimento que culmine, inevitavelmente, na consciência de estar sendo manipulado? Tarefa urgente e difícil. Por enquanto, os panos cognitivos que temos usado para evitar o derretimento do bom senso não tem sido páreo para o calor emocional da desinformação.

*Agradeço a Patrícia Blanco, do Instituto Palavra Aberta, pela generosa troca de ideias que embasou parte significativa deste artigo.