Mandar Bolsonaro à PQP é descer ao nível dele
Que Jair Bolsonaro é um ser humano desprovido de predicados elementares para o convívio civilizado é algo evidente a qualquer um com o aparelho auditivo em ordem. Parece-lhe impossível atravessar as 24 horas do dia sem ofender pessoa, instituição, país, objeto vivo ou inanimado. Passarão aos anais da República os 33 palavrões proferidos na reunião ministerial de 22 de abril de 2020.
Sendo prolífica a obra bolsonarista em termos de falta de decoro, não surpreende que o anedotário de xingamentos presidenciais receba atualizações recorrentes. A mais recente delas ocorreu ontem (27), numa churrascaria em Brasília, durante almoço com cantores sertanejos. Comentando os boatos de gastos excessivos da União com leite condensado, Bolsonaro saiu-se com os seguintes termos aos jornalistas (peço desculpas pelo francês): "vão para a puta que os pariu", "enfiem essas latas no rabo de vocês".
Há um evidente sofrimento psicológico em precisarmos tolerar, diariamente, um tal grau de baixeza. É difícil não ceder aos impulsos primitivos e responder na mesma moeda. Com efeito, gente respeitável tem replicado muitas oitavas acima. Helio Schwartzman torceu para
que Bolsonaro, acometido pela covid-19, morresse. Ruy Castro sugeriu a ele o suicídio. Marcelo Coelho chamou o ministro Pazuello de "general abobado, cujo único talento é conseguir rastejar usando quatro patas". Quanto ao leite condensado, um colunista da "Istoé" retrucou o xingamento e ampliou o arsenal de impropérios. No Twitter, a revista assumiu em nome próprio as ofensas:
Deixa-se a bile fluir, mas... o que além disso? Baixar o nível é descer ao patamar de Bolsonaro e, nesse aspecto, o presidente joga em casa. Primeiro, porque seu limitado vocabulário é paradoxalmente rico em ultrajes. A difusão em rede nacional da expressão trozoba será provavelmente sua segunda maior contribuição à cultura brasileira - a primeira será deixá-la em paz, ao abandonar a presidência.
Segundo, porque espernear e injuriar é sua estratégia política central. Com isso, exime-se de dar explicações sobre o que precisa. Conhece-se o uso retórico do termo fake news por parte, sobretudo, de populistas de extrema-direita. Confrontados com acusações inconvenientes, lançam mão do rótulo - "é fake!" - e assim driblam qualquer tentativa de responsabilização por seus atos.
Bolsonaro trilhou o mesmo caminho. Recentemente, decidiu inovar, substituindo o anglicismo por obscenidades. Houve gasto excessivo em leite condensado? "Vá para a puta que o pariu". Por que sua esposa recebeu 89 mil do Queiroz? "Minha vontade é encher tua boca de porrada". E por aí vai.
A opção por mandar Bolsonaro à PQP ou chegar às vias de fato, como ele sugere, alimenta o circo, fornecendo a visibilidade às polêmicas de que ele se alimenta desde os tempos de bufão do CQC, Pânico e Superpop. O debate público precisa de objetividade e foco nas questões relevantes. Nesse sentido, a prioridade seria discutir a incompetência - objetivamente comprovável - de sua administração em incontáveis dimensões: combate à pandemia, reativação da economia, direitos humanos, pauta socioambiental, enfrentamento às desigualdades. Também precisa estar em tela seu único e recorrente projeto: o golpe de estado, desnudado (e pouco repercutido) na assombrosa reportagem de Monica Gugliano à "Piauí". Esse tipo de avaliação é que pode, eventualmente, acarretar consequências às suas ações, de seu apeamento por impeachment ou pela via eleitoral, de sua responsabilização perante a justiça por eventuais crimes de responsabilidade.
Para isso, é importante deixar as emoções em segundo plano, buscando conversas em que as opiniões e análises estejam baseadas em evidências. Ao impulso de xingar, cabe contrapor que algum grau de repressão dos instintos é essencial para a vida em sociedade. Aos poucos as crianças - não todas, é verdade - aprendem a canalizar gritos, safanões e injúrias para formas mais produtivas de expressão de indignação. É de se perguntar onde estão os adultos da sala. Passou da hora de chamá-los.
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