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Rodrigo Ratier

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Se a "Pátria Amada" nos tratasse como filhos, estaríamos vacinados

Adriano Vizoni/Folhapress
Imagem: Adriano Vizoni/Folhapress

Rodrigo Ratier

04/03/2021 04h00

Imagine que uma pessoa muito amada em sua família — filho ou filha, um pai, uma mãe, irmão ou irmã — esteja numa situação de saúde muito, muito complicada. O risco de morte é seríssimo, a possibilidade de cura é difícil — mas, ei: ela existe! Vai exigir que você gaste mundos e fundos, contraia uma dívida que levará vários anos para ser paga. Possivelmente você também vai precisar pedir demissão ou, ao menos, conseguir uma licença não remunerada de seu emprego. Trazer a cura para para esse ente próximo que você tanto estima vai demandar todo o tempo, energia e dinheiro de que você puder dispor. Mas a possibilidade é real. Ela existe.

O que você faria?

A pergunta é retórica. Qualquer um com um coração pulsando no peito moveria montanhas para salvar uma pessoa querida. Quem já experimentou a sensação de perder alguém para uma doença incurável sentiu isso na pele. Meu pai morreu de uma leucemia aguda e, se houvesse uma saída, uma possibilidade que fosse, eu iria até o inferno para buscá-la.

Sigo com o exercício hipotético, agora no cenário atual. Imagine que você tem o dom de prever o futuro. Em uma de suas visões, você enxerga a pessoa que mais ama no mundo morrendo de covid caso não receba a vacina. Você não sabe quando virá o óbito, mas sabe que será em breve. Você precisa agir urgentemente. Ah, esqueci de mencionar um detalhe: além de vidente, você também é presidente da República, e pode fazer um monte de coisas para tentar trazer a vacina e evitar a morte dessa pessoa estimada.

O que você faria?

Comparar governos com famílias nem sempre resulta em aproximações exatas. Corre-se o risco da simplificação porque as lógicas não são as mesmas — famílias são unidas pelo afeto, enquanto o serviço público deve ser regido pelo princípio da impessoalidade. Mas a situação que estamos vivendo é tão surreal que a apelação sentimental talvez traga alguma luz. Vamos a ela: tenho certeza que, na condição que descrevi, você largaria tudo para trazer a tal vacina, venderia um carro, faria vaquinha virtual, pediria dinheiro na rua e hipotecaria 10 vezes a sua casa. Que se dane: é a vida de quem você mais adora na face da Terra que está em jogo e você pode salvá-la.

Não é preciso ser vidente para saber que há milhares de mortes evitáveis nos próximos meses caso haja vacina. E que um presidente pode mexer muitos pauzinhos para impedir que a catástrofe se aprofunde. O que faz Bolsonaro no pior momento da pandemia, no dia de recordes de mortes por covid? Se desdobra para trazer a cura?

Não: promove um "almoço bem descontraído" com leitão no Palácio do Planalto. Estava "alegre", segundo seus interlocutores. Entre os 50 segundos que separaram uma garfada e outra no suculento suíno, uma pessoa perdia a vida para o coronavírus. O exemplo é a esmo, você pode escolher em um vasto cardápio o que esse energúmeno está fazendo enquanto o Brasil empilha corpos: andando de jet ski, fazendo churrasco, jogando futebol, contando piada homofóbica, aglomerando na praia, aglomerando na cidade, recebendo sertanejos, mergulhando e pescando. A cada escala, Bolsonaro mente sobre a pandemia e sabota seu combate.

É inacreditável.

Claro que transferência de tecnologia demora. Que o tal do IFA, o princípio ativo das vacinas, é cobiçado por todo mundo. Que tem lei de responsabilidade fiscal que impede endividamento, que houve desvios na pandemia e tal e coisa e lousa e mariposa. Ninguém está dizendo que é fácil. Mas, assim: está muito vergonhoso, gente. Às vezes é importante um olhar leigo que diga: "seguinte, galera, está bizarro isso daí. Está na hora de fazer alguma coisa, mexam-se!"

No início da pandemia, a China construiu um hospital em 10 dias. Por que a expansão do Butantan e da Fiocruz vai levar meses? Põe uma equipe gigantesca para construir 24 horas por dia, injeta dinheiro até não poder mais! Isso aqui é uma guerra. "Ah, não tem grana, não pode endividar". Claro que tem. Tem para as coisas mais ridículas. Corta o leite condensado, a picanha e a cerveja do exército. Pode não ser o suficiente, mas envia um sinal. Tomem uma providência.

Se for preciso, toma empréstimo. Passa o chapéu. Se uma catástrofe como essa não é motivo para contrair dívida, o que mais seria? "Ah, vai dar impeachment". Qual o problema? Se o preço do poder é salvar centenas de milhares de pessoas, não vale a pena? O "teto de gastos", a "responsabilidade fiscal" são mais importantes do que vidas humanas? Não é à toa que tem gente séria que considera o neoliberalismo uma barbárie tão brutal quanto o obscurantismo da extrema-direita. Dá férias eternas para o Paulo Guedes em Miami.

Mexam-se. Manda um monte de emissários para os laboratórios chineses, indianos. Faz plantão, monta barraca na porta. Para dar o golpe vocês fazem acampamento. Faz amizade com os embaixadores, fica best friends com eles, para de bobagem de vachina, de vírus chinês. Manda o Ernest Araújo pastar. Despacha o Pazuello para o Amapá e pede desculpas por não ser o Amazonas. Vê qual é a da vacina russa, a da vacina chinesa. Traz qualquer sobra de IFA para o Brasil, qualquer excedente de imunizante. Façam alguma coisa! Paguem o que for preciso, a situação exige. Instalem uma comissão, uma instância ágil de fiscalização que garanta que os contratos, mesmo caríssimos, não contemplem desvios. Gente, são 250 mil mortos, quase 2 mil por dia! Passou muito da hora de agir. Não pode ser tão difícil assim!

Façam o que for preciso. O que for preciso. Não é o que um pai ou uma mãe faria por um filho amado? Todo mundo vai enxergar que o esforço é evidente. Medidas impopulares como lockdowns terão maior adesão. Mesmo extenuadas, as pessoas têm mais chance de ficar em casa por 15 dias se verem uma luz no fim do túnel, sabendo que tem gente cuidando delas, ou se entenderem que seguem jogadas à própria sorte?

O descaso, a irresponsabilidade, a falta de empatia e o "e daí?" generalizado se explicam porque a "Pátria Amada, Brasil" não passa de uma das incontáveis mentiras bolsonaristas. Essa Pátria não tem filhos. Aos olhos do presidente, somos lixo. Alguém o imagina dizendo "não adianta ficar em casa chorando" ao pimpolho Flávio por causa do inquérito de desvio de salários em seu gabinete? Ordenando ao Carluxo para "tocar a vida em frente" a cada tretinha com o Mourão? Gritando "deixa de ser maricas" ao Eduardo Bananinha quando o sonho de ser embaixador nos EUA carbonizou na grelha?

Há duas coisas com as quais Bolsonaro se importa na vida. A primeira é se manter no poder, se possível por meio de golpe. A segunda é com sua família. A nós, que não fazemos parte do clã, o então deputado federal já sentenciava em 2017: "minha especialidade é matar, não é curar ninguém". Um ano depois, 57,7 milhões de desavisados não ouviram, gostaram do que ouviram ou fingiram que não entenderam. Deu no que deu. Em nome de quê ainda toleramos isso?