Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Bolsonaristas mentirosos dão mau exemplo às crianças que dizem defender
- Filha, já fez sua tarefa de casa?
- Hein?
- Tarefa, filha.
- Fiz, mas o cachorro comeu.
- Cachorro? Não temos cachorro, menina.
- Claro que temos. Olha aqui essa foto do Rex com a gente.
- Isso é uma montagem tosca, você acabou de fazer!
- Fazer o quê?
- A foto! Não está mais aqui, você apagou?
- Apaguei o quê?
- A foto com o nosso cachorro, Deus do céu!
- Cachorro? Pai, a gente não tem cachorro!
Ainda bem que minhas filhas não assistem à CPI da Covid. Se assistissem e tomassem gosto pela coisa, diálogos imaginários como esse poderiam ganhar vida. Delirantes, descarados e desaconselháveis para menores, certos depoimentos dados à comissão têm caráter pedagógico. As falas ilustram como a manipulação dos fatos atingiu níveis impensáveis mesmo para a mais complacente das réguas de compromisso com a verdade.
A mentira sempre foi parte da política. A construção das chamadas "narrativas" — interpretações ideologicamente enviesadas dos acontecimentos, visando favorecer um lado e prejudicar outro — são o ar que se respira na disputa pelo poder. A novidade, apresentada pela extrema-direita em escala mundial, é a completa irrelevância dos fatos, mesmo que estejam fartamente documentados em texto, áudio e vídeo.
Como se sabe, a nova ordem atende pelo nome de pós-verdade, termo relativo a circunstâncias em que fatos objetivos são menos importantes do que apelos à emoção ou à crença pessoal. De tão notório, o vocábulo ganhou o título de palavra do ano de 2016 pelo dicionário Oxford. Seu debut no noticiário se deu um ano depois, quando o porta-voz de Donald Trump insistiu que seu discurso de posse havia batido recordes de público. Não foi difícil desmentir o engodo, já que uma profusão de comparações fotográficas com a primeira posse de Barack Obama provava o contrário. Num mundo em que as coisas não estão de pernas para o ar, o flagrante faria corar o presidente americano e seu entourage. Em vez disso, a conselheira presidencial Kellyanne Conway disse que a afirmação apenas apresentava "fatos alternativos" para a audiência.
Fatos alternativos são mentiras. Não deixa de ser chocante notar que fizeram escola, e que continuem sendo oferecidos ao redor do mundo. A versão brasileira é mais patética e prolífica, como mostram os depoimentos à CPI. Equipes de checagem de fatos registram as lorotas às dezenas, de modo que as manchetes não são mais "Fulano mentiu sobre...", mas "Mayra Pinheiro mente 11 vezes", "Pazuello mentiu pelo menos 14", Wajngarten promoveu "espetáculo de mentiras". Como esperar algo diferente se o chefe de todos, Jair Bolsonaro, chegou ao patamar de 3 mil declarações falsas ou distorcidas desde o início do mandato?
Não importa que existam provas das balelas. Pazuello pode justificar que os posts que registram para sempre a pressão do presidente para desfazer a negociação de vacinas com o Butantan (o humilhante vídeo do "um manda, o outro obedece") são "coisa de internet". Wajngarten pode dizer que não viu incompetência no Ministério da Saúde apesar de existir um áudio em que ele diz que viu. Mayra Pinheiro está livre para afirmar que o Ministério da Saúde nunca indicou tratamentos para a covid-19 ainda que existam notas editadas pela pasta com protocolo de uso de medicamentos sem eficácia comprovada. Tudo certo: ouve-se alguma indignação, mas para esses mentirosos a vida segue como antes.
Mentir vale a pena. Essa é a lição que os bolsonaristas ensinam. Num certo sentido, "precisamos proteger nossas crianças", lema de iniciativas como o Escola sem Partido e o projeto de homeschooling da tropa de choque presidencial, traz um alerta real. Precisamos mesmo protegê-las, mas é dessa gente. Aprende-se basicamente pelo exemplo, e o que vem de cima é isso aí. A falsidade compensa. É lícito usá-la como instrumento de dominação. Vale tudo. Portanto, crianças, mintam à larga, pois se depender do governo, está liberado. Não é outra a intenção da minuta de decreto presidencial que visa impedir suspensões de contas e retirada de conteúdo nas redes sociais. Liberdade para mentir sem constrangimentos, mesmo que os incômodos sejam tão discretos como os de hoje.
Para esses mentirosos, o engodo se paga: o prêmio e a conquista e a manutenção do poder. Mas há milhões que não ganham nada com isso e, ainda assim, seguem orgulhosamente "fechados" com essa turma "em defesa da família". Preferem o discurso fraudulento à prática coerente, festejam a hipocrisia ao ver ruir, em silêncio, desculpas esfarrapadas, fotos montadas e cachorros inventados. Enquanto isso, a lição de casa segue por fazer.
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