Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Use o golpismo de Bolsonaro para melhorar sua saúde mental
Corriam os últimos dias de agosto. A conversa por telefone com uma amiga começou assim:
-- Tudo bem?
-- Mais ou menos. Estou muito preocupada com esse lance do Bolsonaro no 7 de setembro.
Algumas constatações.
Primeira: o que a infeliz figura faz ou deixa de fazer ocupa um espaço desproporcional em nossas vidas. Havia muito a se falar, mas escolhemos — não deixa de ser uma escolha — falar dele.
Segunda: sua presença ocupando a cadeira presidencial acarreta um custo psicológico a cada brasileiro e brasileira. Viver sob Bolsonaro é viver num país em decomposição, e sob a ameaça de que alguma coisa ainda mais trágica está na iminência de ocorrer.
Terceira: as duas coisas anteriores são absolutamente inúteis e desnecessárias.
O Houaiss registra que, em sua origem latina, o verbo preocupar tem o sentido de "ganhar por antecipação o espírito de alguém". Preocupados é como nos encontramos desde que pairou no ar o temor de que o capitão reformado pudesse, por meio de uma impensável conjunção de fatores, ganhar as eleições, como de fato ocorreu. Desde então, a presença desse estado de perpétua ansiedade pelo apocalipse faz com que Bolsonaro já entre com o jogo ganho de antemão. Armamento da população, destruição da Amazônia, voto impresso, arroubos golpistas: não importa o retrocesso da vez, ele é suficiente para nos colocar em posição de expectativa pelo desastre, numa ruminação mental capaz de alterar (para pior) o nosso humor, cair na desesperança, entrar em depressão.
Trata-se uma atitude improdutiva diante de uma situação de perigo real e imediato. Vamos imaginar que você sofre uma tentativa de assalto a arma. São três as opções. Você pode fugir, e arcar com as consequências de uma eventual falha; idem para a alternativa 2, enfrentar o ladrão; por fim, você pode optar por aceitar a situação e entregar seus pertences ao assaltante.
A comparação é extrema e pouco otimista, mas sugere um paralelo com esse 7 de setembro que tem feito muitos de nós, inclusive eu, perder o sono. É lamentável que, depois de todo o visto e havido, exista gente disposta a defender o mais cruel e incompetente governo da história do país. Mas é o que é, de modo que um desfecho "fora das quatro linhas da Constituição", ou ao menos uma baita confusão, é possível/provável. Diante dessa ameaça real, novamente pode-se fazer três coisas:
1- fugir, literal ou metaforicamente. A primeira hipótese exige recursos e uma condição legal — um passaporte estrangeiro — disponível a poucos. A segunda, uma dose cavalar de negação, induzida por substância alucinógena ou não, capaz de apagar a lembrança dos tempos medonhos em que vivemos. Eu não recomendaria, mas, enfim, não deixa de ser uma escolha à mão.
2- enfrentar a ameaça, numa gradação que vai desde a insanidade de provocar os manifestantes in loco até convencer alguém a não participar dos atos. Admiro e aplaudo quem tem coragem e disposição para essa postura ativa, em algum momento fui essa pessoa, mas nesse caso não serei. Se algum conhecido ainda cogita apoiar uma movimentação golpista sob a fachada de defesa da liberdade depois de 32 meses de desgoverno, minha argumentação tem pouca chance. Considero que o espaço mental dessa pessoa, que no fim das contas é o que decide como ela percebe o mundo e atua nele, tem pouca semelhança com o mundo concreto. Não vai ser um cafezinho com 15 minutos de conversa que vão mudar essa percepção. A vida ensina — é assim que muitos caíram na real sobre Bolsonaro.
Resta, então, a 3: aceitar a realidade que se impõe. Bolsonaro é um fenômeno popular e há muitos brasileiros enganados, ou que pensam genuinamente como ele. Não somos o Arthur Lira para desengavetar as centenas de pedidos de impeachment, então pouco podemos fazer concretamente para contê-lo neste momento. É uma constatação triste, mas verdadeira.
A chave é que reconhecer isso não conduz, necessariamente, ao fatalismo. Esse choque de realidade pode nos ajudar a enxergar melhor o que efetivamente podemos fazer. Defendi há pouco que a vida ensina, mas não é só ela. Nós também ensinamos, mas menos por palavras e mais pelo exemplo, menos em momentos pontuais e mais pela presença constante na vida de alguém. Nesse sentido, há muitas formas de atuação: a escuta atenta e sem julgamentos dos "bolsonaristas arrependidos"; o engajamento em ações de defesa da democracia; a pressão sobre instituições que podem efetivamente fazer alguma coisa para deter Bolsonaro; a demonstração pela ação cotidiana de que é construir um mundo mais justo, sustentável, tolerante e amoroso; até esperar o tamanho da encrenca para então mover as peças do tabuleiro é estratégia de ação.
Nada disso vai resolver o problema do 7 de setembro, mas pode ter impacto mais adiante. O que não resolve agora nem nunca resolverá é a preocupação, que só causa enorme sofrimento a quem se preocupa. Mas justamente o custo de ter Bolsonaro como presidente também pode ser uma oportunidade de evolução na saúde mental. Somos desafiados a ficar mais atentos a nossos pensamentos, evitando embarcar neles. Qual o propósito prático de imaginar repetidamente um cenário terrível? Se o temor não conduzir à ação, nenhum.
Certo: é muito mais fácil falar do que fazer. Abandonar esse círculo vicioso não é fácil. O controle da mente é uma das grandes tarefas humanas, e não se deixar levar pelos pensamentos catastrofistas é um aprendizado diário. Aprendemos sobretudo quando surge o desafio de lidar com esses pensamentos. Se o assunto é saúde mental, suspeito que o golpismo de Bolsonaro pode ser lido nessa chave, mesmo que seja para reconhecer "estou preocupado" e, assim, já abrir um pouco de espaço mental para outras pautas. Meu desejo para o 7 de setembro é a independência das ameaças do capitão, tanto no mundo concreto quando no complexo universo intelectual de cada um de nós.
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