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No Jd. Ângela, Extra entrega bandeja vazia até cliente pagar por carne
O objetivo era o mesmo: comprar 500 gramas de patinho em um açougue da rede Extra, em São Paulo. As formas de compra, porém, variavam de acordo com o endereço. No hipermercado da av. Brigadeiro Luís Antônio, a um quarteirão da av. Paulista, o procedimento é padrão. O açougueiro prepara a carne, etiqueta a embalagem e a entrega ao cliente. A 22 quilômetros dali, na unidade do Jardim Ângela, na periferia da Zona Sul, o expediente é outro: a carne é pesada, mas o consumidor recebe uma bandeja vazia e só tem acesso ao produto depois de pagar por ele, no caixa.
O relato é da educadora Fabiana Ivo, gestora operacional da Articuladora de Negócios de Impacto da Periferia (Anip). Fabiana é ex-moradora do Jardim Ângela e se deu conta da prática ao comprar carne para a mãe, que ainda vive no bairro, na quinta-feira (14). A coluna convidou a educadora a retornar ao supermercado no sábado. Nos dois dias, recebeu uma bandeja vazia até que pagasse pelo total das compras.
"O que os funcionários me contaram é que essa prática já tem quase um ano. Começou pelo aumento dos roubos na pandemia, com as pessoas pegando a carne e descartando a bandeja. Também disseram que acontece a mesma coisa em outros [pontos do] Extra nas periferias", afirma. No caso de Fabiana, a entrega mediante pagamento foi requerida na compra de patinho — 1 kg no dia 14, 500 gramas no dia 16. Ela também registrou o mesmo procedimento com outro cliente que levava peito de frango. "Linguiça e carne de porco são entregues na hora. Os freezers de livre acesso têm frango, porco, carne de segunda e outras partes menos nobres". Bovina de primeira, segundo ela, só depois do pagamento. "Perguntei se seria possível levar a carne e pagar no caixa. Me disseram que não. A gente paga o código de barras da bandeja vazia e só aí um funcionário vai até o balcão onde ficam as compras e pega o produto", diz.
Consultada pela coluna no sábado, a assessoria de imprensa do supermercado respondeu por meio de uma nota na manhã de hoje:
"A rede informa que este procedimento não faz parte de sua política de atendimento, trata-se de uma falha pontual de procedimento. Assim que teve conhecimento do fato, a loja tomou providências para que a prática fosse imediatamente descontinuada. A rede segue à disposição para quaisquer esclarecimentos."
Ecoa voltou à unidade e constatou que a mudança tinha sido implementada após contato da reportagem — o pedido agora é entregue diretamente em um saquinho, não mais na bandeja vazia.
Segundo o Mapa da Desigualdade 2020, levantamento anual realizado pela Rede Nossa São Paulo, o Jardim Ângela é o bairro paulistano com maior proporção de população preta e parda dos 96 distritos da capital (60,1%). A taxa média de emprego formal a cada 10 habitantes com 15 anos ou mais é de 0,5 — a média da cidade é 6,7. A idade média ao morrer, 58,3 anos, é a menor entre todos os bairros, e a proporção de habitações em favelas, 53,9%, é a segunda maior do município.
"O Código de Defesa do Consumidor proíbe em diversas disposições que pessoas consumidoras recebam tratamento discriminatório de qualquer natureza", afirma o advogado Igor Rodrigues Britto, diretor de relações institucionais do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC). Segundo ele, é ilegal recusar o atendimento padrão às pessoas que se dispõem a pagar pelo produto sem uma justificativa "honesta e de boa-fé", diz.
"Quando um estabelecimento comercial estabelece padrões de atendimento diferenciado para seus clientes por considerar que sua cor, sua origem ou sua condição social é motivo de desconfiança ou que justifica um padrão de segurança diferente ao que submete aos demais, está não apenas violando as normas de defesa do consumidor, mas também ignorando direitos fundamentais de tratamento igualitário", completa.
Para a geógrafa Yamila Goldfarb, pesquisadora e vice-presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), o chamado furto famélico, realizado para satisfazer necessidades básicas da alimentação, aumentou muito por conta da crise econômica. As ações contra ocorrências desse tipo possuem "forte recorte territorial e racial". "Quem é perseguido em supermercado nas áreas centrais é a população negra. Quem mora nas periferias e sofre esse tipo de ação é negro. Uma eventual ameaça de furto não justifica a ação discriminatória e racista das instituições", afirma. Vale ressaltar que os furtos "externos" correspondem a apenas 16% das perdas em supermercados.
Segundo Yamila, saídas para o problema passam por políticas de segurança alimentar e de geração de renda, mas o panorama atual não é favorável. "O governo federal desmantelou a área com medidas como a desestruturação da Conab [Companhia Nacional de Abastecimento], que tinha estoques reguladores, instrumento fundamental para controlar os preços". A pesquisadora aponta, ainda, o veto presidencial ao Projeto de Lei 823/2021, que previa medidas de socorro a agricultores familiares afetados pela pandemia. "É a agricultura familiar que abastece as cidades", afirma.
Ativista e integrante do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de São Paulo, André Luzzi de Campos propõe considerar a questão pela lógica dos direitos. "Para garantir o direito humano à alimentação, o correto seria ter foco na garantia e fortalecimento de equipamentos públicos com preços mais justos — feiras livres, mercados públicos e sacolões, deixando os supermercados com um papel residual na política de abastecimento. Hoje, ocorre o contrário", diz. Para o ativista, há "racismo estrutural" na conduta do supermercado. Ele afirma que a situação pode ser levada aos órgãos e entidades de defesa do consumidor, que podem investigar indícios de tratamento diferenciado entre consumidores, e aos Conselhos municipais. "Essas organizações devem se posicionar enfaticamente sobre o caso investigando, aplicando as sanções cabíveis e demandado os órgãos da prefeitura e do estado na perspectiva do direito à alimentação", afirma.
Fabiana optou por tornar público o ocorrido em sua página no Facebook, onde mobilizou sua rede e expôs o sentimento pelo tratamento diferenciado. "A sensação é horrível, uma afronta à população das quebradas. Vi mais gente revoltada dentro do mercado por estar segurando bandejinha e não a carne. Outros parecem que já se conformaram com uma situação que não deveria ser naturalizada", diz.
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