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Rodrigo Ratier

REPORTAGEM

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"Venda de leite recebido de graça é juridicamente insignificante"

Grupo de Facebook que reúne vendedores de leite em pó dado pela Prefeitura de São Paulo - Reprodução/Facebook
Grupo de Facebook que reúne vendedores de leite em pó dado pela Prefeitura de São Paulo Imagem: Reprodução/Facebook

Rodrigo Ratier

29/07/2022 06h00

A notícia de que há pessoas comercializando no Facebook o leite em pó dado de graça pela Prefeitura de São Paulo tem suscitado reações diante do que seria um crime de fraude. Segundo a reportagem do UOL, o produto do programa Leve Leite tem sido vendido por valores entre R$ 15 e R$ 40. Um decreto municipal proíbe a comercialização desses itens. A pena pode chegar à exclusão do programa social, e a prefeitura afirma que as denúncias sobre comercialização indevida são enviadas para investigação policial.

Mas essa não é a única interpretação jurídica possível para casos como esse. O direito penal moderno estabelece o chamado princípio da insignificância, que orienta a não punição a ofensas consideradas irrelevantes.

"A aplicação do princípio da insignificância tem de ser entendida em caso concretos", afirma Caio Favaretto, presidente da comissão de advocacia criminal da OAB - SP. "Se estivermos falando de pessoas que estão em situação de desamparo social e tentando viabilizar formas de sobrevivência, penso que é o caso de se recorrer ao princípio".

Os relatos da reportagem falam em leite vendido a preços baixos ou mesmo trocado por outros produtos alimentícios, como feijão ou arroz. "Embora só uma investigação possa revelar a extensão da rede de vendas, me parece ser algo bastante diferente de uma organização que tenta se beneficiar de forma criminosa da comercialização. Nesse caso, sim, valeria a pena investigar a fraude", diz Caio. "Mas o que está em jogo do ponto de vista de política criminal é o seguinte: faz sentido mobilizar o aparato de estado, os tribunais, muitas vezes com recursos que chegam às instâncias superiores, para tutelar questões como famílias que têm buscado formas de sobreviver à pobreza e à fome?"

Caio afirma que os tribunais superiores, sobretudo durante a pandemia, têm decidido pelo princípio da insignificância em casos de furto famélico — a subtração de produtos alimentícios para aplacar a fome. "Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem demonstrado surpresa como casos de furtos de barras de chocolate ou peças de carne chegam à corte. Isso mostra como o entendimento do judiciário sobre o princípio da insignificância é diverso", diz Caio.

A fome no Brasil quase dobrou durante os anos da emergência sanitária causada pela covid-19, que coincidiu com a crise econômica e o desmonte de programas de combate à pobreza. Dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar divulgados em junho dão conta de que há hoje 33 milhões de brasileiros sem ter o que comer — equivalente a 15% da população, o dobro em relação a 2020. Pelo recorte geográfico, de raça e gênero, os mais vulneráveis são mulheres negras das periferias no Norte e Nordeste. Cerca de 125 milhões de brasileiros estão sujeitos a algum grau de insegurança alimentar.