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Rodrigo Ratier

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Trilha sonora de 'Pantanal' nos lembra que o Brasil é bom demais

Cena de Pantanal com Almir e Gabriel Sater, nos bastidores do casamento de Juma e Jova + Muda e Tibério - Globo/João Miguel Júnior
Cena de Pantanal com Almir e Gabriel Sater, nos bastidores do casamento de Juma e Jova + Muda e Tibério Imagem: Globo/João Miguel Júnior

Colunista do UOL

05/09/2022 06h00

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O mundo era outro e eu também. A tendência humana é ver o passado com olhos benevolentes, mas às vezes o autoengano tem serventia. Para quem assistiu à versão de 1990, o remake de "Pantanal" tem esse gosto melancólico da passagem de um tempo supostamente mais esperançoso, menos embrutecido. Essas paisagens não eram mais verdes? As tramas paralelas não eram mais fortes no original? Não está faltando alguma coisa?

Com a trilha sonora, acontece algo diferente: é como se elevasse a clássico o que era bom e adicionasse novidades que mostram que, no fundo, as coisas hoje não vão tão mal assim. A trilha sonora de "Pantanal" nos lembra que o Brasil é bom demais.

Já me atualizo para corrigir que "trilha", hoje, significa playlist. Foi-se o tempo das megaprensagens de discos e CDs para cada folhetim das 6, das 7 e das 8. Oficialmente, a trilha de "Amor de Mãe" (2020) foi a última a ser produzida - e já com tiragem simbólica na casa dos 1 mil exemplares, a anos-luz de distância do recorde estabelecido em 1996 pelo primeiro volume de "O Rei do Gado": 2 milhões de discos, CDs e K7s vendidos.

A playlist atual recupera o sumo da trilha de 1990. É um presente a interpretação de Maria Bethânia para o tema de abertura. Composta por Marcus Viana para a versão original, "Pantanal" ganha arranjo delicado de violinos e da viola de Almir Sater. "Chalana", desta vez com Roberta Miranda, e "Comitiva Esperança", novamente com Sérgio Reis, me transportam para a cama de meus pais, onde assistimos à trama inteira. Eu, com 12 anos, à espera de belas paisagens e, com sorte - e a extinta Rede Manchete não decepcionava - alguma nudez.

A seleção das modas de viola, núcleo duro da trilha, segue exuberante. Há clássicos como "Vaqueiro de Profissão", na voz de Jair Rodrigues, e "Cavalo Preto", novamente com Sérgio Reis. Mais recentes são a política "Peabiru" (Almir Sater) e "Assim os Dias Passarão", parceria de Almir Sater, Paulo Simões e Renato Teixeira para cantar a morte de um amigo e - tema recorrente na playlist - o assombro com a passagem do tempo.

A seleção de hits da virada dos anos 1970 para os 1980 resgata quatro figuras maiúsculas. "Dois Animais" recupera Alceu Valença no auge de seu pop pernambucano. Belchior ressurge em "Comentário a respeito de John" falando da solidão e do fracasso da contracultura. "Dia Branco", de Geraldo Azevedo, exalta as possibilidades do desejo "se você vier/ pro que der e vier/ comigo". Beto Guedes e seu "Amor de Índio" reaparecem na interpretação de Gabriel Sater para a delicada versão do maestro João Carlos Martins.

O contemporâneo, enfim, surge democrático. A vertente algo mais sofisticada traz Ney Matogrosso em "Estranha Toada", os agudos de Zeca Veloso em "Sopro do Fole", "Não Negue Ternura" (Luedji Luna e Zé Manoel) e "Gente Aberta" (Letrux). A seara francamente popular é representada pelo sertanejo e, sobretudo, pela inventividade do piseiro/pisadinha, derivações eletrônicas do forró: " Cheiro de Mato" (Raí Saia Rodada), "Eu tenho a senha" (João Gomes) e e "Zero Saudade" (Barões da Pisadinha). É preciso estar muito de mal com a vida para não gostar de Barões.

O ecletismo da mistura final pode não agradar a todos, mas está na mistura a principal força da trilha. Essa, aliás, sempre foi uma das características que fizeram das novelas globais produtos amados pelo povo e estudado pelos acadêmicos: a convivência do erudito com o popular, do passado com o presente, retrato de uma época em que acreditávamos que o Brasil poderia ser esse melting pot virtuoso com suas múltiplas influências se combinando de maneira harmoniosa.

Pantanal nos apresenta esse caldeirão amplo - que, aliás, não é xenofóbico: há espaço para o folk de Iggy Pop em "The Passenger". Há por óbvio idealização e silenciamento de conflitos nesse utópico convívio entre diferentes. Por outro lado... Por que não? O Brasil também não é isso - ou não poderia ser?

Sinto que a trilha da novela nos convida a essa redescoberta e a pelo menos uma outra: o talento, capaz de produzir obras notáveis, nunca deixou de estar aí. Retrato de um país tocante, não necessariamente feliz, mas capaz de produzir o belo na "alta" e na "baixa" cultura (aspas para questionar a hierarquização). Que a arte tenha a potência de nos ajudar a criar novas narrativas nacionais em contraponto à vulgaridade, à violência e à ignorância que sequestrou o poder - mesmo que seja numa trilha de novela.