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Rodrigo Ratier

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por um 'VAR' em entrevistas e debates com candidatos mentirosos

29.set.2022 - Jair Bolsonaro (PL) questiona Simone Tebet (MDB) no debate entre candidatos à Presidência da República. - Reprodução/TV Globo
29.set.2022 - Jair Bolsonaro (PL) questiona Simone Tebet (MDB) no debate entre candidatos à Presidência da República. Imagem: Reprodução/TV Globo

30/09/2022 19h32

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"Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder". Demorou exatos 12 anos para que pudéssemos vivenciar, em toda a sua inteireza, o significado da lição filosófica da ex-presidenta Dilma Rousseff. Também num 29 de setembro, coube ao último debate do 1º turno materializar o sentimento de que vencidos e vencedores perderam com 3h20 de surrealismo distópico.

Sobre a mistura de hospício, picadeiro e carnaval fora de época estrelada por um mitômano e seu comparsa canastrão - um sacerdote fajuto -, Fernando de Barros e Silva foi preciso: "A Globo, o jornalismo, a democracia, foram todos enlaçados e saíram todos desgastados deste episódio. É isso o bolsonarismo - um rebaixamento infinito das ideias, das pessoas, da vida civilizada."

Se algo mudou depois do debate foi o ciclo biológico dos sobreviventes, subtraídos de preciosas horas de sono. Parece improvável que alguém tenha alterado seu voto após o teatrinho da 5ª série, com todo respeito ao teatrinho e à 5ª série. A frustração se deve em parte ao jeitão ultrapassado desse tipo de discussão televisiva. A respeito das sabatinas com candidatos, escrevi em outro lugar que o modelo tradicional de entrevista já não dá conta de indicar quando um candidato está falando a verdade ou não. Penso que o mesmo pode ser dito a respeito dos debates. Se o jornalismo é o relato do real, mas o formato escolhido para produzir suas histórias não consegue sequer chegar perto dessa ambição, alguma coisa está muito fora da ordem.

Uma fatia do fracasso se deve à entrada de novos atores na esfera pública. "Impossível constranger ou fazer assumir pecados e contradições um candidato amoral", escreveu Wilson Gomes, professor titular de Teoria da Comunicação na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em referência à sabatina de Jair Bolsonaro ao Jornal Nacional. O jornalismo parece acomodado com essa (verdadeira) constatação. Não deveria: os formatos jornalísticos são dinâmicos, o que significa que podem evoluir e se adequar às novas realidades.

O episódio de Bolsonaro mentindo sem constrangimentos no JN me fez pensar se seria possível um modelo diferente de sabatina, que combinasse entrevista e procedimentos de checagem. O chamado fact checking já é uma realidade, mas seu impacto ainda é pequeno porque o desmentido nunca tem o mesmo alcance da mentira. Seria possível, no entanto, pensar em uma checagem ao vivo, em que os resultados ficam visíveis durante a sabatina?

Há relativamente poucas experiências de checagem em tempo real. Os colegas com quem conversei dizem, com razão, de que se trata de procedimento sujeito a imprecisões: rotular um conteúdo como "falso" para depois ter de se corrigir por uma eventual apuração apressada poderia desmoralizar todo o processo, de resto já carimbado - sem provas - como "esquerdista" por aqueles que chamam de comunista até a própria sombra. Acolho a ressalva, mas acho que é uma questão de custo-benefício: é possível ser transparente e apresentar à audiência a checagem como provisória e sujeita a revisões. Talvez seja melhor do que simplesmente deixar rolar solto o festival de lorotas, como acontece hoje.

Em termos práticos, o fact checking em tempo real seria algo como o VAR nas partidas de futebol. Ao sinal de uma fala suspeita no debate ou entrevista, aparece na tela uma mensagem do tipo "declaração em checagem" - a fala poderia até mesmo seguir enquanto uma equipe de jornalistas trabalha na retaguarda. Ao fim do procedimento de apuração (idealmente, ágil), o resultado - e o eventual desmentido - é mostrado na tela da TV. Em seguida, o mediador pode pedir que o candidato se confronte com a checagem e esclareça os fatos.

Durante o debate da Globo, fiz um experimento simples seguindo esse modelo em meu perfil no Twitter. Durante os dois primeiros blocos do programa, conferi 14 declarações de Jair Bolsonaro. Adotando a classificação do UOL Confere, encontrei 9 declarações falsas, 2 insustentáveis (sem dados públicos que possam amparar a alegação) e 3 imprecisas (inexatas ou sem contexto).

Foi um trabalho artesanal. Nem todas as falas mentirosas foram apontadas e a checagem demorou mais do que o ideal (o tempo variou entre 1 e 40 minutos). Ficou evidente, ainda, que a existência de um grande acervo de desmentidos das falas de Bolsonaro facilitou a tarefa - para outros políticos menos visados, a preparação prévia precisaria ser mais robusta. Também ajudou o fato de que o presidente costuma reciclar falsidades repetidas à exaustão e sem constrangimento. Figuras mais refinadas exigiriam mais esforço de apuração.

Não se tem a ilusão que um modelo como esse possa impedir as invencionices dos políticos. De todo modo, o temor de ser pego na mentira talvez os iniba um pouco - e a checagem em tempo real pode também reduzir a eficiência dos cortes editados para mostrar, nas redes sociais, apenas os pontos altos da fala. Não é uma ideia nova e nem precisa ser. O que é necessário é algum grau de ação prática. Caso contrário, a máxima roussefiniana seguirá valendo. Todos nós vamos perder.