Topo

Rodrigo Ratier

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Pantanal' fugiu bem do discurso ecochato, mas passou pano para o agro

Pantanal: Zé Leôncio pedirá Filo em casamento - Reprodução/TV Globo
Pantanal: Zé Leôncio pedirá Filo em casamento Imagem: Reprodução/TV Globo

07/10/2022 06h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Na sua primeira versão, em 1990, a novela "Pantanal" apresentava ao país um exuberante ecossistema. As famosas "cenas de contemplação" mostravam rios colossais, áreas alagadas com diversidade vegetal e uma riquíssima fauna - de onças à revoada dos tuiuiús, das sucuris aos jacarés. Trinta e dois anos depois, o remake da Globo fica marcado pelas dramáticas cenas - reais - da queimada que em 2019 e 2020 matou ao menos 10 milhões de animais e carbonizou mais de um quarto da região. As cenas, que foram ao ar no final de julho, são impactantes.

Não foi só o fogo. O cenário do remake é bem mais seco que o da versão original, resultado de uma estiagem prolongada que pode ser sazonal, mas possivelmente também da crise climática e do desmatamento do bioma. A produção teve o mérito de trazer para o centro da cena a pauta ambiental, justamente no momento em que ela se encontra mais ameaçada. Em texto aqui mesmo em ECOA, Rafael Monteiro enumerou boas lições trazidas pela novela: a discussão da agroecologia como alternativa ao agronegócio, o assoreamento dos rios - problema real para a população pantaneira -, as transformações da paisagem, com o dobro do desmatamento e a perda de um quarto da água nos últimos 30 anos, além das já citadas queimadas.

Ao inserir esses temas dentro de uma trama ficcional, encarnando as discussões nas ações de personagens admirados pelo público, "Pantanal" conseguiu, em muitos momentos, driblar o tom professoral e prescritivo que ainda marca o ativismo ambiental. Esse processo de envolvimento faz toda a diferença. No jornalismo, por exemplo, um dos principais critérios para decidir qual o destaque que um assunto vai merecer é a proximidade. Uma explosão com um morto em São Paulo tende a ter muito mais tempo de exposição no Jornal Nacional do que um descarrilamento de trem com 300 vítimas fatais em Bangladesh. O que "Pantanal" fez foi aproximar a pauta ecológica do público mais amplo, conferindo humanidade aos graves problemas que costumam ser expressos em estatísticas frias e hipóteses futuras.

Sobre essa novidade, a atriz Dira Paes, a Filó do remake e também ativista ambiental, foi precisa. "Não somos mais rotulados de 'ecochatos' como éramos anos atrás. O termo 'ecochatos' caiu em desuso, ainda bem. É muito importante que todos saibam a gravidade das queimadas no Pantanal", afirmou em entrevista à revista Quem.

Outro avanço foi a fuga do discurso individualizante. Num texto do ano passado, comentei sobre essa faceta fatigada do discurso da preservação. Uma exposição num shopping paulistano tentava alertar para a degradação da natureza com os motes de sempre: "não deixe sujeira no mar", "não queime as árvores", "economize água". Escrevi: "Você manda a criança tomar banhos curtos mas omite que a pegada hídrica de 1 kg de carne é de 15 mil litros de água. Fala de queimadas como se fossem solucionáveis pela boa vontade de proteger biomas sem mencionar que as políticas e instituições que poderiam conter o problema estão sendo desmontadas."

O combate à crise climática passa fundamentalmente por perceber que não estamos sozinhos no mundo. Fazemos parte de uma cidade, de um estado, de um país e de um planeta. "Pantanal" contempla em parte essa perspectiva, e deixa a desejar em outro tanto. As queimadas devastadoras e a degradação da paisagem aparecem como um desastre sem responsáveis identificáveis, o que é impreciso. O site De Olho nos Ruralistas compilou as autuações mais expressivas por desmatamento no Pantanal desde 1995. Na lista, diversos expoentes do agronegócio, com atividades como criação de gado, produção de carvão, cana e soja.

1 - Reprodução/TV Globo  - Reprodução/TV Globo
Juma (Alanis Guillen) e Jove (Jesuíta Barbosa) em Pantanal
Imagem: Reprodução/TV Globo

Dar nome aos bois talvez seja um pouco puxado para a emissora do agro é pop, mas é urgente e necessário. Quem é que sabe, por exemplo, que 8 das 10 cidades que mais emitem gases estufa no Brasil estão na Amazônia, e que a principal fonte de emissões é o desmatamento? Parece uma realidade impensável, que em nada combina com o modelo mental que fazemos da floresta. Também ajuda a direcionar esforços: embora uma coisa não exclua a outra, combater o avanço predatório do agronegócio parece mais urgente e eficaz do que promover caras e frustrantes campanhas do tipo "jogue lixo no lixo".

Avançar - e rápido - na conscientização ecológica é uma tarefa importante para o futuro imediato. A emergência climática e as transformações tecno-sociais nos colocam diante de um planeta em colapso ambiental e com escassez estrutural de trabalho. Em outras palavras, o mundo não pode mais crescer, o que nos obriga a trabalhar com outras métricas em lugar do avanço do PIB. Bem ali "no coração do Brasil" há exemplos de integração mais harmônica com a natureza que a novela pouco mostrou. Populações indígenas e seus saberes tem muito a nos ensinar para que os versos do tema de abertura composta em 1990 ainda possam se realizar: "A Terra tão verde e azul, os filhos dos filhos dos filhos dos nossos filhos verão".

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL