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Rodrigo Ratier

REPORTAGEM

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Artigo 'escondido' da transição destrava recurso polêmico pra universidades

Uma vez aprovada, a PEC da Transição possibilita que sejam implantadas as mudanças propostas pelo Governo Lula ao Auxílio Brasil, antigo Bolsa Família                              -  Reprodução.
Uma vez aprovada, a PEC da Transição possibilita que sejam implantadas as mudanças propostas pelo Governo Lula ao Auxílio Brasil, antigo Bolsa Família Imagem: Reprodução.

Rodrigo Ratier*

Colunista do UOL

09/01/2023 06h00

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Como se sabe, o efeito mais visível da promulgação da chamada PEC da Transição - materializada na Emenda Constitucional 126 - é a liberação de cerca de R$ 145 bilhões fora do teto de gastos para o pagamento do Auxílio Brasil, re-renomeado Bolsa Família. Mas há benesses adicionais. Menos visível ao debate público, um pedaço da legislação - para quem quer precisão, o inciso II do parágrafo 6o-A do artigo 107 - libera do limite as "despesas das instituições federais de ensino e das Instituições Científicas, Tecnológicas e de Inovação (ICTs) custeadas com receitas próprias, de doações ou de convênios, contratos ou outras fontes, celebrados com os demais entes da Federação ou entidades privadas".

Traduzindo para o português corrente: dinheiro que as universidades federais conseguirem por conta própria não entram no teto de gastos. Segundo levantamento da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições de Ensino Superior (Andifes), esse tipo de receita ultrapassa meio bilhão de reais.

É uma boa alternativa?

Há consenso de que a medida era necessária. O teto de gastos limitava a captação de recursos pelas instituições públicas ao valor do ano anterior corrigido pelo IPCA (Índice de Preços ao Consumidor).

"O que eventualmente excedesse esse montante era capturado pelo Ministério da Economia", explica Fabio Cesar Venturini, presidente da Associação dos Docentes da Unifesp. Fernando Cassio, professor da UFABC e especialista em políticas públicas de educação, vai na mesma direção. "Impedir as universidades de usufruir desse recurso não fazia o menor sentido".

Em 2022, a universidade federal que mais arrecadou recursos próprios foi a de Juiz de Fora (UFJF). Foram mais de 100 milhões de reais - e poderia ter sido bem mais, afirma o reitor Marcus Vinicius David.

"Quando se pega a série histórica de todas as universidades, dá para ver que, antes da emenda do teto de gastos, as receitas próprias estavam subindo. Quando vem o teto, qual o incentivo que o reitor vai ter para gerar receita própria?", questiona.

Recursos extras fazem a universidade deixar de ser pública?

Se a emenda constitucional é bem-vinda, a polêmica diz respeito a uma questão de fundo: até que ponto universidades públicas podem ser bancadas por recursos externos, incluindo financiamento privado? A controvérsia é antiga e, de certa forma, até arrefeceu nos últimos tempos.

"Hoje, quem acha que a universidade vai se sustentar só com dinheiro público é um pessoal mais idealista, diz Venturini. "Não somos contra a captação de recursos externos. O grande problema está na agenda liberal de tirar recursos da universidade para implantar um modelo de universidade empreendedora, que vende serviços para se manter. Isso não funciona em nenhum lugar do mundo."

Fernando Cassio lembra que era justamente essa a perspectiva do programa Future-se, a fracassada tentativa de reforma universitária do governo Bolsonaro em 2019. Dinamitada antes mesmo de sair do papel, a proposta do então ministro Abraham Weintraub previa "transformar a universidade num entreposto de captação de recursos, com fundos de vários tipos e até venda de naming rights", aponta o professor da UFABC.

A natureza dos recursos é um aspecto importante a ser observado, diz Cassio. "Equipamentos com horário ocioso podem ser usados mediante aluguel", exemplifica. Coisa muito diferente é privilegiar cursos pagos para gerar renda extra. Marcus Vinicius David ressalta que existem limites estabelecidos para esses casos. "Os docentes têm um limite de horas em que podem trabalhar com projetos que geram receitas próprias. Se eu liberar todos os professores para esse tipo de atuação, não vai ter ninguém para dar aula", afirma.

Hoje, a maior parte dos recursos extras vem de convênios com instituições públicas para a realização de pesquisas - além de projetos com entes públicos, como prefeituras ou governos de estado. O reitor da UFJF explica que os recursos da universidade em sua maioria vêm dos convênios. Ele ressalta que a universidade pública não é uma empresa - crítica comum à busca de recursos privados. "Nossos cursos de pós-graduação, por exemplo, continuam gratuitos e nosso restaurante universitário continua sem custo para os estudantes", afirma.

"No caso da UFJF temos um núcleo de pesquisa em educação que é acionado por várias prefeituras", explica David. Luiza Canziani (PSD-PR), autora da proposta de emenda constitucional que retirava da regra do teto de gastos os recursos próprios das universidades, também ressalta esse aspecto. Ela afirma que, com a aprovação da legislação, as universidades voltaram a ter incentivo para buscar recursos públicos com "transparência".

De volta à controvérsia central, os especialistas convergem ao apontar o caráter secundário do financiamento por recursos próprios. "Recursos próprios são auxiliares. Precisamos lutar pela recomposição do orçamento público das federais", afirma Fernando Cassio. "Até nos Estados Unidos, país com grandes universidades privadas, a pesquisa é mantida pelo governo, com verbas estatais", diz Venturini. "Por aqui, o governo tem que a todo custo fazer esforço para manter carreira, salários e um quadro estável de servidores."

*Com reportagem de Raphael Preto Pereira