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Rodrigo Ratier

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Contra a ansiedade das crianças, a tarefa urgente de desacelerar a educação

Sala de aula - Divulgação/ PMT
Sala de aula Imagem: Divulgação/ PMT

Michelle Prazeres*

Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP)

19/06/2023 06h00

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"Acelera, Heitor!", "Vamos, Sofia!", "Eu vou te deixar aí, hein?!", "Helena, corre. Ainda precisamos fazer um monte de coisas!". Dia destes estava em um ambiente com alguns adultos cuidadores e todos eles - guardadas as suas especificidades - estavam apressando as crianças.

Já começo este artigo salvaguardando: minha ideia não é condenar estas pessoas adultas, até porque eu não tenho uma vida exatamente lenta como mãe de dois meninos, trabalhadora e moradora da maior metrópole do país. Minha questão aqui é olhar para este episódio como um sintoma coletivo da nossa doença de velocidade; e como alerta para o fato de que precisamos cuidar deste sintoma também coletivamente (justamente para não condenar as pessoas - adultas ou crianças - a partir de uma visão liberal do cuidado e do bem-estar, que diz que tudo vai se resolver e que basta você se organizar).

Isso não é verdade. E não é, porque a velocidade - ao contrário do que o capitalismo contemporâneo (em especial aquele imbricado com as tecnologias) nos faz crer, não é uma escolha (você acelera áudios e vídeos do WhatsApp e de plataformas de streaming?), mas uma violência (você começou achando que optou por acelerar conteúdos e agora não consegue mais ouvir e assistir nada em velocidade normal e quer acelerar também as pessoas?).

Vivemos o que o estudioso alemão Hartmut Rosa chama de aceleração social do tempo, uma condição da nossa era que significa que estamos vivendo uma espécie de contração das temporalidades. Estamos fazendo mais coisas em uma mesma unidade de tempo. O sul-coreano Byung-Chul Han olha para aspectos desta aceleração em Sociedade do Cansaço. O professor Jonathan Crary chama este regime temporal de 24/7 (24 horas, 7 dias por semana). A pesquisadora Judy Wajcman afirma que estamos vivendo vidas aceleradas na era do capitalismo digital.

Nós todos e todas sabemos muito bem do que se tratam estes conceitos, pois vivemos no corpo, na prática e no cotidiano os indícios da cultura da velocidade. Estamos exaustos, cansados, impacientes e ainda assim, sempre nos sentindo "em dívida". Uma pesquisa do Instituto Datafolha revelou que 43% das pessoas brasileiras consideram que vivem a vida em velocidade x2. Vinte e cinco por cento da população informou ao levantamento que acelera conteúdos em áudio e vídeo; e 9 entre 10 pessoas dizem que não se sentem calmas.

Percebam como isso é grave. Começamos achando que a velocidade era uma escolha. E agora estamos reféns.

Abri este texto mostrando como esta cultura da aceleração está afetando todos nós e especialmente as crianças e jovens. A primeira infância vem sendo cada vez mais "assediada" pela velocidade por ser um período de tempo preservado desta lógica (especialmente das dinâmicas do trabalho e do consumo). As crianças mais velhas e jovens - especialmente pela relação com as tecnologias, mas não apenas - estão cada vez mais cedo sendo apresentadas a um universo de conteúdos e valores dos quais nós, como adultos, não podemos nos omitir em mediar.

Quando digo especialmente por conta da relação com as tecnologias, pondero que a cultura da velocidade não é produto apenas da indústria digital. É fruto também de uma trama muito bem orquestrada da nossa concepção de crescimento e desenvolvimento econômico, da ideia de progresso, de avanço e da noção de tempo, amparada na compreensão cronológica de que estamos sempre indo adiante.

No entanto, é preciso entender que as empresas de tecnologia têm uma parcela alta nesta conta. Disfarçados de instrumentos de conveniência, os dispositivos tecnológicos trazem para nossas vidas - e cada vez mais precocemente para a vida das crianças - conteúdos, ambientes e valores que carregam uma espécie de "currículo oculto".

Um dos elementos deste currículo é a velocidade. Classes ansiosas, estresse docente, valorização da multifuncionalidade, superocupação docente (professores 24/7), reverência ao desempenho e à competição, louvor ao ensino multidispositivos e móvel always on, glorificação da conectividade, apreço ao aluno empreendedor de si, enaltecimento da gestão eficaz e exaltação do estudo multitelas são algumas das reverberações da adesão às tecnologias na educação das quais falo em artigo publicado na revista Comunicação e Educação da USP.

A pressa, a agilidade, a ansiedade, a incapacidade de esperar, a falta de interesse pelo outro, a desatenção e a sexualização precoce são todos sintomas que podem ser percebidos em nossas crianças e estão associados (entre outros fatores) a um tipo de aceleração específica, potencializada pelo uso de dispositivos tecnológicos na infância e na adolescência.

Esta correria alimentada pelos dispositivos é reforçada em momentos de convivência como estes que narrei no parágrafo que inicia este texto. Estamos ensinando a pressa para nossas crianças. E junto com isso, estamos lecionando uma "cartilha" de desumanização das relações e erosão do comum. Sem nos conectarmos (não com o wi-fi, mas com as pessoas), não é possível construir philia, pertença, grupo ou coletividade.

Mas como seria possível desacelerar a educação?

Não se trata de tarefa simples. Não existe uma "cartilha slow" (porque a ideia de que há uma "fórmula" como solução é justamente a antítese do slow). A saída é sistêmica e requer um empenho coletivo, que olhe de forma singular para cada realidade e cada contexto. As possibilidades vão desde pensar as jornadas de tempo da educação (inclusive, repensando a organização temporal das aulas e os regimes de dedicação exaustivos de professores/as), as literacias digitais (passando pela regulação das plataformas) e os letramentos temporais (ensinar sobre o tempo e a aceleração) ao esforço de resistir à velocidade no cotidiano, por meio da preservação dos espaços de tempo para a desaceleração. Apesar de não ser um "checklist do sucesso", alguns valores do movimento slow podem inspirar reflexões e ações.

Em "The slow professor: desafiando a cultura de velocidade na Academia", as canadenses Maggie Berg e Barbara K. Seeber analisam a "corporativização da Universidade" e propõem a adoção do modus operandi slow para resgatar o sentido da pesquisa, da docência, da aprendizagem e da produção de conhecimento. A obra das autoras diz respeito ao contexto do ensino superior e a um outro país, mas quando elas propõem (1) Ficar mais tempo offline; (2) Fazer menos coisas; (3) Ter sessões regulares de tempo para nada; (4) Ter tempo para conviver; e (5) Mudar o modo como falamos sobre o tempo ela dão pistas de algumas atitudes que podem começar a transformar os ambientes e as relações.

Joan Domenèch Francesch, autor de "Elogio de la educacion lenta" afirma que "as atividades educativas devem definir o seu tempo necessário de realização", "na educação, menos pode ser mais", "a educação é um processo qualitativo", "a construção de um processo educativo deve ser sustentável", "cada pessoa necessita de um tempo específico para aprender", "cada aprendizagem se realiza no momento oportuno", "para conseguir aproveitar melhor o tempo, é preciso priorizar as finalidades da educação e defini-las", "a educação necessita de tempo sem relógio", "é preciso devolver o tempo da infância à infância", "temos que repensar o tempo entre pessoas adultas e crianças", "o tempo dos educadores tem que se redefinir", "a escola tem que educar para o tempo e educar o tempo" e "a educação lenta forma parte da renovação pedagógica".

Os valores do slow podem inspirar, mas se as saídas não serão "privadas", a pergunta que se impõe para a Educação é sobre seu papel diante deste mundo acelerado. Particularmente, gosto muito da imagem do "dique de contenção": não se trata de negar a aceleração e as tecnologias, mas de adotar uma postura crítica que assuma a condição como dado de realidade.

Tendo a acreditar que precisamos olhar para isso como cuidadores e abordar a aceleração como tema, oferecer experiências não aceleradas de socialização e "ensinar comunidade", como escreve bel hooks em seu livro com este título, cujo subtítulo preconiza "uma pedagogia da esperança". Se continuarmos achando que a velocidade é o "natural" e não olharmos para isso como questão cultural, seguiremos tratando como escolhas individuais sintomas para os quais devemos olhar coletivamente. Famílias e escolas têm uma tarefa juntas: desacelerar a infância e a juventude como atitude de resistência diante de um mundo que corre.

*Hoje o espaço é da amiga Michelle Prazeres, fundadora do Instituto Desacelera, para a democratização do cuidado, do bem-estar e da saúde mental. Jornalista, pesquisadora, professora e ativista, Michelle é hoje a principal referência no tema "aceleração social do tempo" - e nas maneiras de resistir a essa tendência. Você pode conhecer mais do trabalho da Michelle no site dela ou do Instituto Desacelera. (Rodrigo Ratier)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL