Rodrigo Ratier

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Como no Brasil, autoritarismo uruguaio deixou mortos e desaparecidos

No Centro de Fotografia de Montevidéu, dois pavilhões da exposição Archivos 73-85 mostram visões opostas de um mesmo país. No 1° andar, iluminado por uma extensa janela que se abre à avenida 18 de Júlio, imagens de uma nação pacífica, moderna e ordenada, um idílio para o homem sul-americano que queira trabalhar e para o estrangeiro que deseja investir. No subsolo, sem luz natural e com um involuntário odor de esgoto, instantâneos que a propaganda tentou esconder: estudantes reprimidos, pessoas mortas ou desaparecidas, comunidades negras desalojadas, violência, pobreza e, aos poucos, uma sociedade que se organizava para pedir o fim do arbítrio.

Cenas do período de ditadura cívico-militar no Uruguai (1973-1985). Mas poderiam ser no Brasil (1964-1985), na Argentina (1966-1973 e 1976-1983) ou no Chile (1973-1990). "Nenhum regime político, nem mesmo o totalitarismo, pode se sustentar apenas pela repressão", sinaliza o texto que abre a mostra. Tão necessária quanto a ameaça de punição é a produção de consenso. É o imaginário coletivo que garante que setores importantes da população apoiem o governo — ou, pelo menos, que não se oponham a ele.

Lá como cá, ontem como hoje, impressiona que a construção de um discurso que atenda aos interesses do autoritarismo seja tão semelhante. Os ingredientes principais não conhecem fronteira de tempo e de espaço. Primeiro, projete a existência de um inimigo — interno ou externo, tanto faz, mas sempre "o outro" — e que seja capaz de despertar pânico constante. No outro extremo, posicione o governo como garantidor da lei e da ordem, o comando a ser seguido para que se evite a ameaça e a chave para a preservação dos valores mais fundamentais: a família, a pátria, a moral e os bons costumes.

Parece farsesco e é, mas têm funcionado. A estrutura narrativa de parte significativa das fake news políticas não foge muito dessa espinha dorsal. No Uruguai dos anos 1970-1980, coube às Direções Nacionais de Relações Públicas e de Turismo desenhar essa política de comunicação. Suas produções cobriam do suporte escrito ao audiovisual, circulando na forma de publicidade oficial, noticiário, panfletos turísticos e livros escolares.

Páginas de jornais uruguaios dos anos 1970 e 1980 com publicidade oficial da Ditadura uruguaia.
Páginas de jornais uruguaios dos anos 1970 e 1980 com publicidade oficial da Ditadura uruguaia. Imagem: Rodrigo Ratier

No polo da demonização, a capa da cartilha UJC, Escuela de Comunismo sintetiza a imagem do mal: uma sinistra ideologia de inoculação de dúvida, descontentamento, rebeldia, intolerância, ódio, fanatismo e dogma, produtora de "homens formigas" prontos para a guerrilha e o terrorismo.

Cartilha UJC: Escuela de Comunismo, publicada pelo Ministério do Interior.
Cartilha UJC: Escuela de Comunismo, publicada pelo Ministério do Interior. Imagem: Rodrigo Ratier

Felizmente o país estava em outra rota, garantia o livro Uruguay 1973-1981: Paz Y Futuro. Se na democracia as universidades "funcionavam como centros de propaganda subversiva e boa parte do corpo docente utilizava as cátedras com claros fins proselitistas", depois da "intervenção do Poder Executivo [eufemismo para Golpe de Estado] a velha instituição voltou a funcionar a serviço da nação". Na educação secundária, a mesma mudança virtuosa. Professores que antes "perdiam 30% do tempo em greves" agora "dedicam todas as suas horas de trabalho para desenvolver sua missão principal: ?ensinar a ser homem?".

Imagens do livro Paz y Futuro retratam as universidades antes de 1973 como 'centros de propaganda subversiva'.
Imagens do livro Paz y Futuro retratam as universidades antes de 1973 como 'centros de propaganda subversiva'. Imagem: Rodrigo Ratier
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Publicações que apresentam o Uruguai a capitalistas ou turistas estrangeiros anunciam uma economia em expansão e trazem sem disfarce o racismo ("não há população indígena", "o país tem a população mais branca do continente") e o machismo, na forma por aqui bem conhecida de incentivo ao turismo sexual (mulheres jovens, bronzeadas e de biquíni, ou sorridentes sob a legenda "um rosto bonito faz mais agradáveis as férias").

No folheto turístico, a região do Alto Uruguai tem uma jovem de biquíni como destaque.
No folheto turístico, a região do Alto Uruguai tem uma jovem de biquíni como destaque. Imagem: Rodrigo Ratier

Para o público interno, o colaboracionista El País, até hoje o principal jornal do Uruguai, convida as concidadãs a participar do Concurso "A Dona de Casa do Ano". "Premiaremos quem trabalha silenciosamente para sua família e sua comunidade", explicam os organizadores, alertando que uma equipe vai visitar belas, recatadas e do lar que forem sorteadas entre 10 e 11 da manhã, em data a ser anunciada oportunamente.

Cupom do concurso 'Dona de Casa do Ano' no jornal El País.
Cupom do concurso 'Dona de Casa do Ano' no jornal El País. Imagem: Rodrigo Ratier

No subsolo, numa grande parede cinza ainda quase vazia, os visitantes são convidados a deixar suas próprias fotos e testemunhos sobre o período para compor a exposição. Uma imagem sem data mostra o então estudante Pablo Valenzuela Lazo no pátio da Faculdade de Arquitetura da Universidade da República. Um bilhete manuscrito informa que Pablo passou por todas as instâncias de participação estudantil na instituição pública mais importante do país. E conclui, em maiúsculas: "[A vitória] foi dos que não se cansaram."

Na descrição da foto de um estudante uruguaio, a frase '[A vitória] foi dos que não se cansaram'.
Na descrição da foto de um estudante uruguaio, a frase '[A vitória] foi dos que não se cansaram'. Imagem: Rodrigo Ratier

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