Rodrigo Ratier

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Reportagem

A segunda morte da pesquisadora que revolucionou a alfabetização

Diz muito sobre a falta de interesse real pela educação, e também sobre uma decolonialidade para inglês ver, o silêncio sobre a morte da psicolinguista argentina Emilia Ferreiro (1937 - 2023). Há 40 anos, seus estudos sobre a chamada psicogênese da língua escrita - uma rigorosa investigação sobre como as crianças aprendem a ler e escrever - provocaram um terremoto num território até então dominado por cartilhas prescritivas e focado na repetição mecânica.

Seus achados são revolucionários até hoje. A descoberta de que os pequenos não apenas copiam letras, mas são capazes de elaborar ativamente hipóteses sobre o sistema de escrita trouxe para o terreno da alfabetização a perspectiva que o epistemólogo Jean Piaget (1896 -1980) havia aberto para a infância como um todo: crianças são seres pensantes, capazes de enfrentar desafios intelectuais, pôr em jogo seus conhecimentos, aprender com o erro e assim atingir formas sucessivamente mais complexas de raciocínio, em um processo que começa no primeiro contato com o mundo e segue até o fim da vida.

Ferreiro pôde mostrar que a percepção da relação entre letras e sons ocorre por etapas. Primeiro a criança usa as letras sem correspondência sonora, a hipótese pré-silábica; depois, cada letra passa a representar uma sílaba (hipótese silábica); a seguir, vem o entendimento de que as sílabas podem ser compostas por mais de uma letra (hipótese silábico-alfabética) e de que há sons que, dependendo da palavra, podem ser representados por letras diferentes (hipótese alfabética).

Tudo isso veio com muita observação de sala de aula, registro de atividades, revisão e validação pelos pares. Em uma área até hoje marcada por intenso impressionismo, Ferreiro fez Ciência com C maiúsculo. E mostrou que todas as crianças podem aprender. Não só as ricas, todas. Não só as possuidoras de "dom", "facilidade", "inteligência", conceitos subjetivos usados para naturalizar diferenças sócio-históricas no acesso à educação. Todas, todos.

"As contribuições dessa investigação tiveram um impacto expressivo no Brasil. Entre 2001 e 2003, Emilia Ferreiro colaborou diretamente com o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (Profa), responsável por disseminar a produção científica a partir do marco psicogenético. No cenário atual é difícil encontrar um professor alfabetizador que não tenha ouvido falar na Psicogênese da Língua Escrita e que não saiba dizer quais são os níveis de aquisição da escrita", afirma Giovana Zen, professora da Universidade Federal da Bahia e Presidente da Rede Latino-americana de Alfabetização, cujo embrião foi lançado pela própria Emília Ferreiro, em 1987.

Suas pesquisas não apontavam soluções fáceis como novos livros, sistemas de ensino padronizados ou tecnologias que pouco acrescentam, exceto às contas bancárias de quem lucra - e muito - com o mercado em que se transformou a educação. Rigorosa, a psicogênese se baseia em professores-pesquisadores, intelectuais, estudiosos, profundos conhecedores de uma didática específica que permita lançar mão das intervenções mais adequadas para cada etapa da vida das crianças e cada contexto específico da sala de aula.

Na vida a gente dá algumas sortes, e uma das minhas - sorte grande - foi ter trabalhado com gente sabida e generosa que me ajudou a começar a construir o olhar para a complexidade que é o aprendizado infantil. Sou grato a todas essas professoras, em especial à Regina Scarpa, uma inspiração. A outra sorte foi ter duas crianças fantásticas para quem olhar. Seis anos atrás, escrevi sobre o assunto na revista Nova Escola. Reproduzo aqui alguns trechos:

"Qué peteta [chupeta]", dizia Luiza, cerca de um ano atrás, ao completar seu primeiro aniversário. "Eu fazi cocô na pivada", celebra hoje, aos 2 anos e 4 meses, cada vez que cumpre com sucesso esse importante desafio. "Olha ali o 4 e o 2", afirma, empolgada, ao identificar as letras A e S no texto de um livro. É lindo ver nossa filha refletindo tão intensamente para entender como funciona a língua. Seus equívocos - os de qualquer criança, evidentemente -, são hipóteses acerca das regras e regularidades de como se fala e escreve. A psicolinguísta Bénédicte de Boysson-Bardies, do Centro Nacional de Pesquisas Científicas, em Paris, dá a medida desse maravilhamento. "Mesmos os estetas mais blasés deveriam ficar estupefatos diante da extraordinária engenhosidade e da eficácia do sistema que, nos bebês, preside a aquisição da linguagem. A criança é um pesquisador nato".

"A criança é um pesquisador nato". Isso modifica tudo, do nosso olhar diante do erro - parte fundamental do processo de aprendizagem - ao respeito que devemos aos pequenos. Luiza se alfabetizou e agora é a vez da Clara, a quem chamo, reverentemente, de "minha professora", pelo tanto que aprendo com essa menina e seu encantamento pelo mundo, pela curiosidade de entender e criar explicações para como as coisas funcionam. Para o que é a vida.

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Volto a Ferreiro para destacar sua centralidade nessa perspectiva sobre o conhecimento e suas implicações na educação. Um ensino comprometido com esse respeito pelo direito infantil de pensar pressupõe robusta formação. É um trabalho de longo prazo e pouco glamouroso, que exige enorme disposição para combater o imediatismo da política e o oportunismo dos mercadores de ilusões.

Emília Ferreiro foi uma adversária feroz das falsas balas de prata. Num debate público raso como piscina de criança, foi responsabilizada pelos alarmantes índices de analfabetismo funcional na América Latina - relação de causalidade inexistente, pois o sistema escolar no subcontinente nunca deixou de ser cartilhesco. Também foi "acusada" de incentivar que os alunos não tivessem os erros corrigidos - outra inverdade, já que sua proposta previa intervenções específicas bastante sofisticadas para ajudar o aluno a avançar.

Mesmo a universidade não fez jus à sua obra. "Inclusive nas discussões acadêmicas, a complexa teoria psicogenética tem sido utilizada apenas para etiquetar as crianças e classificá-las", diz Giovana. "As várias críticas à abordagem psicogenética construtivista desconsideram toda a produção científica das últimas décadas, o que contribui para a disseminação de interpretações equivocadas sobre como se aprende e como se ensina a ler e a escrever, mesmo entre aqueles que assumem as contribuições de Ferreiro como basilares na discussão sobre a alfabetização".

Emília Ferreiro morreu no sábado 26 de agosto. Mas a estereotipação de sua obra foi também uma espécie de 1a morte Emilia Ferreiro, ainda em vida. A argentina teve sua produção mais recente escanteada da academia e da formulação de políticas públicas. Investigadora incansável, ela seguia produzindo pesquisas de excelência no campo psicolinguístico. Foi também uma ativista. "Ela sabia da importância da sua obra e tinha pressa em formar pesquisadores que pudessem seguir investigando os processos de aprendizagem da linguagem escrita", afirma Giovana.

Convidado pela coluna a se manifestar sobre o falecimento de Emília Ferreiro, o MEC enviou nota assinada pela Secretária de Educação Básica, Katia Schweickardt:

"O Ministério da Educação lamenta o falecimento da pesquisadora argentina Emília Ferreiro, referência mundial no campo da alfabetização. Com a "Psicogênese da Língua Escrita", desenvolvida em parceria com Ana Teberosky, Ferreiro revolucionou o modo de descrever e interpretar como as crianças se apropriam da língua escrita, a partir de uma perspectiva construtiva piagetiana. A pesquisadora desenvolveu inúmeros projetos em parceria com universidades brasileiras e com secretarias municipais e estaduais de todo o país, com foco permanente em fortalecer a capacidade da escola pública alfabetizar todas as crianças. Que o legado de Emília Ferreiro continue inspirando a todos, lembrando os educadores e gestores públicos da urgência da garantia do direito humano à alfabetização."

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