'Se não cai no vestibular, ninguém liga': optativas são nó na rede privada
A partir de hoje e pelas próximas três semanas, a coluna divulga uma série de reportagens sobre a realidade do Novo Ensino Médio em quatro escolas paulistas. Duas delas são privadas - uma de perfil classe média e outra de elite - e duas são públicas - uma que contou com a ajuda da universidade e outra que tenta caminhar por seus próprios pés. Apuração e texto são do jornalista Matheus Zanin, que defendeu Trabalho de Conclusão de Curso em Jornalismo na Universidade de São Paulo (USP) sobre o assunto.
A primeira experiência retratada é a do Colégio Guilherme de Almeida, instituição privada no centro de Guarulhos (SP), que atende, majoritariamente, famílias das camadas médias da região.
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"Eu costumo dizer que o Novo Ensino Médio é semelhante a uma ciclovia em uma cidade. A ciclovia é uma ideia ótima, mas o problema é a nossa estrutura urbana. Qualquer coisa colocada sobre uma base inadequada vai dar errado", diz o coordenador pedagógico Jorge de Meneses Chaves, enquanto reflete sobre a implementação da reforma do Ensino Médio na escola em que trabalha.
Jorge é responsável por seis turmas de ensino médio no Colégio Guilherme de Almeida, instituição privada no centro de Guarulhos (SP). A instituição atende, majoritariamente, famílias de classe média da região. As mensalidades para o Ensino Médio giram em torno de 3 mil reais.
A infraestrutura robusta da escola - opção de educação bilíngue e em período integral, ginásio poliesportivo, laboratórios e sistemas de ensino padronizados - não mitigou os desafios decorrentes da nova legislação O coordenador sentiu o peso de reestruturar a vida escolar de alunos e professores para atender às diretrizes do Ministério da Educação (MEC).
O nó principal, como se sabe, foi a introdução da parte diversificada em 40% do currículo - os itinerários de disciplinas optativas. O Novo Ensino Médio (NEM) teve início em 2021 na escola, ainda em plena pandemia. Em meio aos rodízios presenciais, 1º e 2º anos passaram a ter aulas no novo formato com duas opções de itinerários de optativas - um de ciências humanas e linguagens e outro de ciências da natureza. Em 2023, foi a vez do 3º ano entrar no modelo.
A alteração resultou na diminuição de aulas de disciplinas como Inglês e no oferecimento de disciplinas como Espanhol dentro do leque de extracurriculares, ao invés da permanência na grade comum.
A opção inicial da escola foi criar aulas consideradas "menos estressantes", sobre empreendedorismo socioambiental, role-playing game (RPG) e investigação criminal. Uma das disciplinas, batizada de "Que Esporte É Esse?", consistia numa espécie de educação física adicional. O professor contava a história de algum esporte menos popular, como rugby e lacrosse. Em seguida, os alunos o praticavam.
Não deu certo. Quase ninguém era reprovado e os alunos não achavam os conteúdos relevantes. "Se não aparece no vestibular, [a matéria] não é levada muito a sério", diz uma aluna.
Não demorou para a direção rever as disciplinas. "O público que eu atendo pensa em uma boa formação, e boa formação significa aprovação em universidades boas. Como eu vou vender isso [as optativas] para uma família?", questiona Jorge.
Para tentar resolver o dilema, o colégio criou disciplinas eletivas obrigatórias. "Matemática para ciências humanas e ciências naturais", "estatística I, II e III", "dinâmica das linguagens I, II e III" e "introdução ao pensamento científico I, II e III" são alguns dos exemplos do cardápio atual.
A quantidade de aulas por matéria depende do itinerário escolhido. No 3º ano, existem 5 aulas semanais de geografia, mas apenas 3 são obrigatórias e compõem a formação geral básica, enquanto 2 estão dentro do itinerário ciências humanas e linguagens. Ao mesmo tempo em que alunos estão tendo aula de geografia como componente do aprofundamento de ciências humanas, na sala ao lado, alunos da mesma turma que optaram pelo itinerário ciências da natureza estão estudando biologia.
Em resumo, as matérias adicionais, que até então eram supostamente baseadas nos desejos dos alunos, assumiram outro foco. Algo como o velho currículo de roupa nova. "O que é o itinerário formativo no Guilherme de Almeida? São as mesmas disciplinas de geografia, física, química, história...", afirma o coordenador pedagógico. A ideia foi não perder o preparo para os vestibulares.
A polêmica com o socioemocional - e o digital
O pacote de optativas obrigatórias inclui, ainda, a disciplina "My Life". É o equivalente à matéria chamada de "projeto de vida" ou de "educação socioemocional" em outras escolas. A oferta é digital, na plataforma da empresa Conexia Educação.
Bianca Ongaro, ex-professora de espanhol do Guilherme de Almeida e uma das responsáveis pelas aulas de projeto de vida, sentiu a dificuldade de lidar com os materiais digitais: "Que isso sirva de lição para mim, nunca mais vou aceitar uma proposta em que o material do aluno é totalmente virtual. Chega na hora, não funciona".
Um exemplo foi quando os alunos precisaram preencher um questionário para priorizar as competências socioemocionais a serem trabalhadas na escola. A professora deixou a enquete aberta por 2 semanas para atingir o mínimo de 70% de estudantes respondentes. O aplicativo ficou fora do ar - e ela não conseguiu atingir o número necessário.
Outro inimigo é o celular. Para garantir o engajamento dos estudantes presencialmente — sem acessar outra tela ou aplicativos —, Bianca pede que as atividades digitais sejam feitas ali mesmo, na sala de aula.
Entre os estudantes, a avaliação é semelhante. Um aluno do 1º ano diz já ter tido problemas de acesso no aplicativo e que tem dificuldades em se concentrar nos conteúdos explorados durante as atividades.Ao longo da apuração, a Conexia Educação foi procurada pelo repórter. O comentário da empresa veio por meio de nota após a publicação da reportagem: "Ao optarem por adotar a plataforma, as escolas têm todo o suporte da Conexia, que inclui a orientação para a implementação e uso do My Life, e ambas as partes atuam juntas para superar os desafios que podem aparecer na jornada."
Com o Novo Ensino Médio no ar há 3 anos, a avaliação no Guilherme de Almeida é que os responsáveis pelo currículo precisaram entender a melhor forma de conciliar as diretrizes da lei com as necessidades da escola - que respondem, em boa parte, aos desejos do mercado. A escola se adequou à lei. A questão que fica é se a reforma, em casos como o do Guilherme de Almeida, não foram apenas cosméticas. Em um ensino conteudista pautado pelo vestibular, o que de fato se alterou?
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