Rodrigo Ratier

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Greve na USP abre caixa de demandas ocultas, mal-estar e incertezas

Cadeiras amontoadas impedindo entrada em salas, estudantes em marcha com bandeiras e megafone, assembleias em meio a cartazes com palavras de ordem. Cenas de uma greve como tantas outras na história da Universidade de São Paulo (USP)? Sim e não. Se por um lado a estética do protesto estudantil permanece a mesma, de outro, muita coisa mudou: os atores do movimento e suas táticas; o perfil das lideranças e da base; os meios de comunicação e as formas de construir alianças ou reforçar antagonismos; o cenário político, cultural e social dentro e fora da universidade.

Quanto à relevância das reivindicações - mais professores e funcionários, mais e melhores políticas de permanência estudantil -, é difícil encontrar quem seja contra. Mas Deus, o diabo e outros menos cotados estão nos detalhes: a reitoria já havia anunciado programa de contratação de 879 docentes, abriu diversos editais de concurso para mais de 200 funcionários e aumentou o auxílio-permanência em "quase 60%", segundo o comunicado oficial. A que os estudantes respondem: é pouco para uma instituição que diz ter R$ 5,7 bilhões em caixa. E é tarde.

Segundo a Associação de Docentes da Universidade de São Paulo, entre 2014 e 2022 a USP teria perdido 1.042 professores. Ou seja, 163 a mais do que a reposição proposta pela reitoria, sendo que a quantidade de alunos subiu 32% entre 2002 e 2022. E como cada concurso leva em média 8 meses e não há pessoal para realizá-los em bloco, a situação só deve ter algum alívio em 2025. A demanda é também por mais democracia: professores e estudantes não foram formalmente incluídos na definição de quantas e quais contratações deveriam ser feitas.

De forma mais ampla, a greve se coloca contra um projeto de universidade que os críticos classificam como neoliberal. Em vez de prever reposição direta das vagas de docentes que se aposentam, a reitoria acena com os chamados editais "de mérito". Em novembro do ano passado, a reitoria publicou um edital para o preenchimento de 63 vagas que deveriam ser disputadas pelas unidades - uma comissão elegeria os vencedores baseado na "excelência" das propostas, processo que o sindicato docente classificou como "subjetivo" e "imposição de visão meritocrática e produtivista" à contratação de docentes.

Com faculdades e institutos competindo entre si pelo direito de repor professores, não espanta que a corda siga arrebentando no lado das graduações menos prestigiadas. Curso de coreano na letras corre risco de fechar; artes plásticas teve 11 disciplinas canceladas; obstetrícia agoniza na USP Leste; a área de humanidades sofre com salas lotadas e escassez de matérias optativas. E por aí vai. O movimento grevista tem defendido a volta do gatilho automático para a substituição de professores - uma aposentadoria abriria necessariamente um concurso para suprir a vaga aberta.

Na batalha pela opinião pública, depois de um início de cobertura simpático às demandas do movimento, O Estado de São Paulo convoca docentes titulares para questionar os métodos da greve e sinalizar com reprimendas judiciais. Nada de novo: piquetes - o impedimento de entrada a quem queira "furar" a paralisação - são estratégias clássicas dos movimentos grevistas e têm uma dimensão de proteção contra represálias e eventuais perseguições a quem deseja cruzar os braços. Há, porém, muitas formas de utilizá-los: é possível, por exemplo, combiná-los com comissões de esclarecimento sobre a greve, o que vem ocorrendo pouco até aqui.

A Folha de S. Paulo, em editorial, preferiu usar o movimento para atacar o financiamento "falho" das universidades públicas e defender, como é praxe, a cobrança de mensalidades. A combinação de um governo privatista como o de Tarcísio de Freitas com a entrada em vigor da reforma tributária adiciona mais um complicador ao tabuleiro. A USP é financiada por um percentual do ICMS, tributo que deve acabar até 2033 com a entrada em vigor das novas regras. Janela para melhorar os investimentos ou janela para cortar? Há quem veja terreno propício para demandar mais recursos; outros, ao contrário, temem que a greve carimbe a universidade como lugar de "baderneiros" e incentive o governador e a Assembleia Legislativa de SP, de maioria conservadora, a apertar ainda mais o cinto da universidade.

Há que se considerar, ainda, a construção concreta do movimento. Ninguém espera que os grevistas tenham doutorado em história de movimentos paredistas, mas, por enquanto, a queixa é de que falta saliva aos estudantes. Há uma dimensão de qualquer greve que se dá por conversas miúdas, no cara a cara do papo franco para criar relações de aliança e canais de diálogo. Forjados em um ambiente político mais virtual que concreto - eco da pandemia e também sinal dos tempos -, os alunos têm preferido se comunicar por meio de ofícios secos, contatos ríspidos diante de piquetes ou na terra sem lei das redes sociais.

O escasso treino para o debate de parte a parte resultou no fracasso de reconhecer o óbvio: trata-se de uma greve por solidariedade aos docentes e funcionários, tão ou mais afetados quanto os estudantes pelo sucateamento da instituição. Informados pelos relatos das unidades rachadas, tanto o sindicato docente quanto o de funcionários da USP não viram condições de se somar ao movimento grevista, apontando apenas a manutenção do "estado de paralisação com indicativo de greve". Na tradição da universidade, significa algo como uma greve light.

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O mal-estar é palpável: estudantes não compreendem o funcionamento da universidade, exigem tudo para agora, promovem cancelamentos via rede social e não querem se responsabilizar pelos efeitos da greve? Ou professores são incapazes de reconhecer sua branquitude diante de um alunado mais preto e periférico, trazido para a instituição pela (tardia) política de cotas? Como lidar com a turma que questiona metodologias de ensino, biografias, bibliografias e legitimidade para ocupar cargos? Estão "fazendo história" ou "jogando o jogo do inimigo"? O exemplo mais saliente da escalada de tensões vem da vizinha Unicamp, onde um inaceitável docente ameaçou estudantes grevistas com faca e spray de pimenta. Mas a animosidade está por toda a parte.

No futuro imediato, segue o roteiro padrão. De um lado, a reitoria aposta no cansaço como estratégia para a desmobilização. Na primeira rodada de negociações, na quinta-feira passada (28 de setembro), o reitor Carlos Gilberto Carlotti Jr. estava em viagem a Paris. Sua representante, a vice-reitora, permaneceu por 15 minutos na conversa. Nada indica avanço significativo para o encontro entre reitoria e estudantes previsto para hoje (4). A estrada é longa. Há em curso um embate não apenas fomentado pela polarização política - há sérias desavenças mesmo entre setores progressistas. O choque é geracional, cultural e de classes. Não vai acabar com o fim da greve.

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