Precisamos superar a ideia de que professor trabalha 'por amor'
O discurso é de Marte, a prática é de Vênus. Se há uma área em que o que se fala e o que se faz raramente caminham na mesma direção, essa área é a educação. Pegue-se o exemplo da opinião pública sobre os professores. Excetuando-se a franja radicalizada que delira com a fantasia de "militantes travestidos de docentes", a maior parte da população vê a profissão com bons olhos. Uma tarefa nobre e necessária, que merece nosso muito obrigado e homenagens neste dia 15, dia do professor. Educação é prioridade e isso não se discute.
Falta definir concretamente o que é "prioridade". Como parabéns não enche barriga, uma dimensão do reconhecimento ao papel da educadora e do educador precisa se traduzir em dinheiro no bolso. Nesse aspecto, ainda é preciso avançar muito. No começo de outubro, uma pesquisa da FGV-Ibre construiu um ranking da remuneração média de 126 profissões de ensino superior. Se você quiser encontrar o lugar do professor, nem perca tempo fuçando o topo da tabela. Vá até a rabeira e prepare os dedos das duas mãos para contabilizar o total de funções docentes entre as 10 piores remunerações: professores do ensino pré-escolar (os mais mal pagos, com salário de R$ 2.285), de artes, para necessidades especiais, do ensino fundamental, de música, outros profissionais de ensino.
Há quem olhe e não se espante. Ainda persiste uma crença de que ensinar é missão, sacerdócio, e de que o educador precisa ser um abnegado. Há de fato uma dimensão muito bem-vinda de transformação social ligada à tarefa docente, algo que muitas vezes se torna um fator de satisfação com a profissão. Mas a ideia de educar "por amor" tem feito muito mal à categoria. Por várias razões.
Antes de tudo, porque educar é papel de profissionais. Defender que para ensinar bastam boa vontade e paixão é ignorar a complexidade inerente à tarefa. Dar boas aulas exige formação específica e aprofundada, que inclui conhecimentos sobre didática e metodologias de ensino, psicologia da infância e da adolescência, sociologia e filosofia da educação, legislação educacional, - e claro, sobre as especificidades dos conteúdos da disciplina e da faixa etária para a qual se vai lecionar. Isso para não mencionar a crescente carga de responsabilidades que a sociedade deposita nas costas do professor: alguém pensou em educação midiática, financeira, para a saúde, para o trânsito, para a paz, para o uso das tecnologias? Se a lista é virtualmente infindável, o salário continua o mesmo.
Em segundo lugar, porque a ausência de bons salários afasta os melhores alunos da profissão. Ao longo da escolarização básica, muitos meninos e meninas podem considerar a sério a docência como opção de carreira. Mas logo desistem - ou são aconselhados a desistir por seus próprios professores! - por conta dos baixos vencimentos.
A situação já foi pior: a Lei que estabelece o piso do magistério completou 15 anos em 2023 e conseguiu, de alguma forma, reduzir a distância entre os rendimentos dos professores e das demais carreiras de ensino superior. Mas a pesquisa da FGV mostra que ainda falta muito, e a comparação é desigual: algo como 4 em cada 10 estados e municípios ainda não pagam o piso. Hoje, se um professor da Educação Básica quiser ganhar um salário decente, ainda precisa recorrer à multiplicação de turnos, muitas vezes em diferentes escolas, o que gera problemas que vão da falta de tempo para preparar aulas e corrigir provas aos crescentes índices de burnout e outros transtornos mentais na categoria.
A educação é um terreno fértil para os vendedores de ilusão: "implemente esse novo currículo!", "compre meu sistema apostilado de ensino!", "construa um espaço maker e um laboratório de educação socioemocional!", "instale aqui esse app de educação a distância que seus problemas serão resolvidos!". Quando não atrapalham, algumas dessas coisas podem amenizar problemas por um tempo, mas as soluções duradouras estão sempre ligadas à presença de bons professores - bem formados, bem remunerados e satisfeitos com a carreira.
Isso custa dinheiro, é claro. Num país de dimensões continentais como o Brasil, em que o sistema educacional registra tantas carências e desigualdades, é preciso construir o consenso de que vale investir muito e por um bom tempo nessa área. Como isso demora e exige esforço político, é mais fácil distribuir maçãs no dia do professor. Suspeito que não haverá fruta que chegue até que a prioridade para a educação deixe o discurso e se transforme, finalmente, em ação prática.
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