'Ensino Médio ainda hierarquiza raças e apaga negros', diz sociólogo
Corre a terceira semana de novembro e Valter Roberto Silvério, professor titular na Ufscar (Universidade Federal de São Carlos), tem uma agenda repleta de reuniões em Brasília. "Estou aqui para discutir as mudanças na lei de cotas e incentivos para a aplicação da lei sobre o ensino de história e cultura afro-brasileira. Pelo menos neste mês, somos escutados, mas queremos falar também nos outros onze", brinca o sociólogo, numa referência ao mês da consciência negra.
Tradutor para o português dos oito volumes de "História Geral da África", da Unesco, Silvério é referência em cultura negra brasileira. Sobre a interface do tema com a educação, publicou recentemente "Ensino Médio e Relações Étnico-raciais", uma dura nota técnica da Associação d3e, Dados para um Debate Democrático na Educação.
"A forma simplificada e caricatural em que se expressa o debate público entre a descontinuidade e/ou aprimoramentos do Novo Ensino Médio não nos permite avançar na compreensão do que está em jogo em relação às dimensões histórico-sociais na atualização dessa etapa da formação dos jovens", diz a nota.
Silvério argumenta que a forma como o Ensino Médio retrata o Brasil é equivocada. Ignora as experiências e vivências de indígenas e negros, grupos fundamentais para a formação da sociedade brasileira, apagados pelo projeto de uma nação de inspiração europeia e pelo que chama de "racismo científico" —a ideia de que esses grupos não teriam história, se contrapunham à modernidade e que portanto deveriam ser "assimilados" à cultura ocidental.
O Brasil mudou muito, diz o sociólogo, e matrizes de ensino como a BNCC Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que norteiam o que deve ser lecionado na Educação Básica, não acompanharam essas transformações. "São modelos que não dialogam com temas e problemas que são globais, da questão racial à de gênero, das especificidades territoriais à pluralidade cultural", afirma.
Também fica de fora a juventude —ou juventudes, como defende o professor, na medida em que é impossível reduzir a variedade de projetos de vida e visões de mundo contemporâneas a uma categoria homogênea. "Pode-se dizer que a Amazônia representa metade do país. E o que nós sabemos sobre as juventudes amazônicas? Muito pouco. Livros e currículos ainda têm uma perspectiva centrada no Sudeste do país."
E não é apenas uma questão de representatividade. É preciso quantidade e qualidade. Ao serem retratados como povos sem história, indígenas e negros têm seus sistemas de conhecimento desconsiderados pela escola, em favor do modo de pensar iluminista. "Essas populações não são um 'anexo' do Brasil que precisa ser incorporado à cultura 'oficial'", diz Silvério. "Seus modos de vida específicos e seus conhecimentos estão relacionados a dimensões que precisamos aprender. Por exemplo, para assegurar a sobrevivência de ecossistemas essenciais para a vida."
Nada disso foi resolvido com o NEM (Novo Ensino Médio), de 2017. E, para Silvério, tampouco será com a "reforma da reforma", o Projeto de Lei 5230/23, proposto pelo Governo Federal para ajustar a política nacional para a etapa de ensino. "Há um conforto psicológico dos setores progressistas em defesa do PL. Mas os livros já chegaram às escolas, professores já estão fazendo os itinerários formativos."
Parte importante do problema está na forma como as mudanças foram construídas e implementadas. Entusiasta da gestão democrática, o professor da Ufscar diz que não se constrói matriz curricular sem a participação efetiva dos estudantes —o contrário do que foi feito com a reforma de gabinete em 2017 e mesmo agora, com escassas consultas públicas. "Não basta ouvir as entidades representativas. É preciso criar mecanismos para capilarizar a discussão, de modo a que o jovem se sinta parte da escola e de sua proposta."
O silenciamento, diz Silvério, tem preço alto. "A violência epistêmica [do apagamento do conhecimento das juventudes] resulta em um conjunto de inadequações, entre elas a violência física nas escolas", afirma.
Para os jovens, a escola é percebida muito mais como espaço do tipo prisão e muito menos como lugar de desenvolvimento Valter Roberto Silvério, sociólogo e professor da Ufscar
Concretamente, o professor propõe mudanças dialogadas em cada escola e em cada rede —e graduais, sem necessariamente revogar todas as transformações recentes ("Isso desperdiçaria energia e recursos econômicos", diz). A discussão do novo PNE (Plano Nacional de Educação), prevista para 2024, é um alvo importante para estabelecer metas para a incorporação efetiva de múltiplos saberes ao Ensino Médio. "Penso que seria importante discutir permanentemente uma proposta de mais longo prazo para a alteração da matriz de ensino", argumenta.
O esforço vale a pena. Silvério reconhece que a escola perdeu parte de sua força socializadora —a capacidade de influenciar identidades e modos de ser, agir e pensar—, mas aponta que isso se deve à atual falta de sentido do Ensino Médio para os jovens que o frequentam.
"O modelo de escola é da sociedade urbano-industrial da primeira metade do século 20. Não cabe mais, e o desinteresse dos estudantes mostra isso. A 'crise', para mim, é a oportunidade de transitar para um outro lugar. Os jovens podem indicar como lidam com essa crise. Eles se interessam muito e se esforçam quando são incitados a fazer o que acham importante. A gente subestima sua capacidade de decidir. Os projetos futuros precisam ouvi-los —sobretudo indígenas e negros—, entender o que quererem e criar as condições para uma escola da qual eles se sintam parte integrante", finaliza.
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