Invisibilidade do 'Sul Global' mostra que a humanidade não é para todos
À direita da linha amarela está o Hemisfério Norte. À esquerda, o Sul. Inaugurado em 1992 para sinalizar a passagem de uma metade à outra do planeta, o Monumento à Metade do Mundo, em San Antonio de Pichincha (26 km do centro de Quito, no Equador), abriga um museu de nove andares que conta a história da missão franco-espanhola que no século 18 veio à América do Sul comprovar a tese de Newton de que nosso planeta tem forma geoide. Sim, a Terra não é plana, mas também não é uma esfera perfeita: é um globo achatado nos polos, com superfície irregular.
A risca Norte-Sul diz respeito a um conceito geográfico, mas também é possível pensá-la como uma metáfora. Fala-se em divisão Norte-Sul para nomear o abismo que existe entre os países ricos (concentrados sobretudo no Norte do planeta) e os pobres (majoritariamente no Sul). A designação substitui o binarismo "países desenvolvidos" X "subdesenvolvidos" - ou "em desenvolvimento", no eufemismo politicamente correto. A nova denominação é mais adequada porque supera uma visão social etapista, como se o objetivo de toda nação fosse se desenvolver à maneira europeia e norte-americana. Um "desenvolvimento" que levou o mundo à beira do precipício, e que se for universalizado em seu consumismo predatório acabará por pulverizar-nos a todos.
A fronteira Norte-Sul tem evidentes raízes históricas. Expõe antigas metrópoles e colônias e inspira uma leitura de mundo muito em moda, o decolonialismo, que sinaliza justamente a persistência dessa relação que forjou a modernidade. A ideia é que países do Sul nunca superaram a condição de colônia. Continuam sendo explorados violentamente e é esse saque aos recursos naturais e humanos dos mais pobres que sustenta a opulência do rico Norte.
A divisão Norte-Sul não é apenas planetária. Há o Sul no Norte - 112 milhões de pobres na União Europeia (20% da população de 28 países), 40 milhões nos EUA (11% do total) - e o Norte no Sul, como dão mostras todas as capitais latino-americanas. Ao viajante com dinheiro, Quito é uma cidade organizada, limpa, ordenada. Possui um extenso e bem cuidado centro histórico, patrimônio cultural da humanidade desde 1978, e uma zona segura, repleta de centros de compras e bons restaurantes na parte nova da cidade. Em Quito, a Zona Norte geográfica é também o Norte metafórico. Seu símbolo mais evidente é o Parque La Carolina, enorme e arborizado, cheio de atrações que não devem nada ao... eu ia escrever Parque Ibirapuera, mas pode cravar Central Park (Nova York) ou Parque del Retiro (Madri) que a comparação segue verdadeira.
De táxi ou aplicativo, é possível viver de enclave em enclave, deslocando-se do JW Marriott ou do Wyndham Garden para o shopping Le Jardín, ao teleférico que sobe 4 mil metros no monte Pichincha, ao estrelado menu degustação do restaurante Nuema ou à Ciudad Mitad del Mundo, que alberga a latitude 0 citada no início do texto. De Nova Deli a Buenos Aires, troquem-se os nomes, mas a lógica é a mesma. E também as fraturas.
Em Quito, um passeio de trólebus a 35 centavos de dólar (moeda oficial do Equador, com George Washington na nota e tudo) revela o Sul no Norte: muito mais indígena e preto, o coletivo biarticulado é um feirão em movimento. De La Carolina à vizinhança do centro histórico, ambulantes vendem fones de ouvido, canetas multicor, pulseiras ou simplesmente pedem esmola a quem puder ajudar - como em São Paulo, no Rio, Brasília ou Salvador. O ponto final é o terminal Playón de la Marin, de onde partem ônibus intermunicipais em direção ao Sul.
Em Quito, o Sul geográfico é o Sul metafórico. De costas para a estátua da Virgen del Panecillo, que abençoa a parte estruturada da cidade, esparrama-se um enorme vale que avança por encostas de morros em casas autoconstruídas, ruas com calçadas incompletas e cartazes que indicam ausência do Estado: "Não roube aqui. Ladrões serão linchados pela comunidade". Antes um país calmo, o Equador viu disparar a violência ligada ao narcotráfico.
Como em Porto Alegre, BH ou Recife, o Norte depende do Sul para operar. Na capital do Equador, todas as manhãs centenas de milhares de trabalhadores e trabalhadoras se deslocam rumo ao centro rico. Recém-formada em jornalismo, Daniela vive em Mejía à procura de um emprego na área. Enquanto nada aparece, desloca-se até Quito para participar de cursos gratuitos ou pagos. São duas horas e meia para ir e o mesmo tempo para voltar.
Cristian é um motorista de Uber que também faz um caminho parecido todos os dias. Mora na zona Sul, em uma casa de 2 quartos com aluguel a US$ 120. Tem direitos, mas não muitos. Seu sono, por exemplo, dura no máximo 5 horas por noite. Às seis já está de pé para levar o filho Adrian à escola. Depois faz algumas corridas, à tarde leva o menino de 10 anos para os treinos no campo da Universidade Católica - o sonho é ser jogador de futebol. Deixa o menino em casa, sai para algumas corridas e só retorna tarde da noite.
Cristian trabalhava como assistente comercial até que a pandemia lhe tirou o emprego. Agora as coisas estão mais complicadas: ele envia currículos e até consegue contatos, mas esbarra na questão da idade. Aos 38 anos, é considerado velho para seu ramo.
O jeito para sustentar os três filhos - ele é pai divorciado e ficou com a guarda das crianças - foi pegar no volante. Cristian acha exagerada a mordida de 40% que a Uber dá em suas corridas, mas não as vê como uma das formas violentas que o capitalismo encontrou para seguir extraindo valor desde a crise de 2008. "É o que me dá de comer", afirma. Ele não se vê como parte de uma categoria de trabalhadores nem gosta da esquerda equatoriana. "Rafael Correa [presidente do Equador entre 2007 e 2017] fez muitas coisas para os pobres. Mas roubou, abriu as portas para a corrupção e é narcotraficante".
O ano foi duro e Cristian tem pouca perspectiva de que as coisas melhorem em novembro e dezembro. Às vezes chora sozinho pensando em como vai fazer para fechar o mês. Com seu Nissan 2013 batido, ele precisa ter cuidado: transporte por aplicativo é ilegal em Quito, por isso Cristian sempre pede a um dos passageiros que ocupe o banco da frente. Seu maior inimigo é o Estado. A documentação pendente fez dele um especialista em driblar batidas policiais. Para a blitz a 1 km do aeroporto, onde ele foi me levar para embarcar de volta ao Brasil, o jeito foi passar rezando. Naquele dia, nada aconteceu.
Daniela é craque na geografia da grande Quito e conhece os bons bares da região boêmia de La Ronda. Cristian sabe onde encontrar o melhor encebollado, o típico ensopado de peixe, e o mais tradicional cerdo horneado (porco assado) a preços pra lá de honestos. O Sul é lar de conhecimento sobre biodiversidade, organizações sociais não patriarcais, laços de solidariedade não baseados na mercantilização da vida, arquiteturas da sustentabilidade e outras ideias que, como nos conta Ailton Krenak, podem ajudar a adiar o fim do mundo.
Seria um equívoco ficar apenas na idealização que encerra um olhar positivo e benevolente sobre o Sul. Mas é igualmente errado qualificá-lo como "subdesenvolvido". Mas assim se faz, e como nos ensina o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, a humanidade moderna não se concebe sem uma sub-humanidade moderna, a riqueza não existe sem a exploração. Uma tese, diz ele, "tão verdadeira hoje como era no período colonial".
Agora, na capital do Equador, são 18h de uma tarde do fim de outubro. Daniela e Cristian retornam ao fundo de um abismo, ao vale de casas autoconstruídas no Sul. De lá, sairão na madrugada seguinte, para que seus fugazes serviços continuem sendo extraídos, no Norte, a um preço marginal.
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