Imprensa que levou 5 anos para noticiar tragédia em Maceió deve se repensar
Parte considerável da cidade de _ _ _ _ _ afunda, dezenas de milhares de pessoas dos bairros _ _ _ _ _ perdem suas casas, danos ao importante ecossistema _ _ _ _ _ podem ser irreversíveis.
Não precisa ser jornalista para sacar que a repercussão, a indignação e as providências que serão tomadas dependem das palavrinhas que se colocam nos espaços pontilhados. Imagine o escândalo imediato, por exemplo, se as escolhidas para cidade fossem "São Paulo", para os bairros, "Pinheiros e Perdizes" (onde vivo), e para o ecossistema, "Parque Ibirapuera". Mas a realidade preencheu o espaço com "Maceió" para cidade, "Bebedouro, Pinheiro, Farol e Mutange" para bairros" e "lagoa Mundaú". Resultado: uma tragédia socioambiental que, ao olhos da imprensa, ficou por cinco anos no subterrâneo, escondida da vista como o sal-gema cuja extração hoje colapsa a capital das Alagoas.
Denunciar um suposto conluio da grande mídia para varrer o nome Braskem do noticiário é a explicação mais recorrente. Greenwashing, irrigação de veículos com verbas publicitárias, atribuição de responsabilidades a intempéries ou a sujeitos ocultos, cooptação de jornalistas com coquetéis e prêmios, comunicados de imprensa que omitem e confundem são, sim, estratégias recorrentes no capitalismo extrativista e predatório praticado por tantas empresas ao redor do mundo.
Isso conta um pouco da história, mas não tudo. A começar pelo suposto efeito dessas medidas, que tende a ser desigual em alcance e duração - falar em "conluio" pressupõe uma imaginativa uniformidade, algo como uma combinação secreta entre os barões da mídia pelo silenciamento. Parece teoria da conspiração - e é. Há uma parte da explicação que repousa dentro das próprias redações e de suas maneiras de fazer jornalismo. Como fazer mea culpa não é nosso forte, é conveniente deixar essas razões de fora.
Um primeiro conjunto de fatores diz respeito ao que na teoria do jornalismo se chama de "valor notícia". Para dizer de forma simples, trata-se de responder à seguinte pergunta: o que faz com que um acontecimento qualquer se torne notícia? Há dois tipos de características: as confessáveis, que aparecem nos manuais de redação - amplitude, apelo, empatia, ineditismo, proximidade - e aquelas sobre as quais pouco se fala em voz alta.
Sobre essas, um estudo pioneiro de pesquisadores noruegueses ainda na década de 1960 elencou alguns fatores: negatividade é importante (daí a brincadeira, bem séria, na verdade, de que para o jornalismo "notícia boa é notícia ruim"); a duração do acontecimento, idem (um desabamento é "melhor" para o noticiário do que um afundamento lento e processual); se o lugar onde ocorre o fato é "relevante" (o que é sinônimo de rico - 10 mortos em Nova Iorque valem mais que 300 em Bagdá) e se as pessoas envolvidas são "importantes" (de novo, se são ricas ou famosas - a sociedade do espetáculo vem relativizando o que entendemos por "importante").
Ao longo das décadas, o estudo de 1965 vem sendo reatualizado por diferentes estudiosos. Essa turma indica uma mudança aqui, outra ali, mas o cerne se mantém inalterado. O jornalismo é dinâmico, mas alguns de seus valores são prevalentes: na definição do que é notícia, o CEP e a classe social são, sim, fatores tácitos de decisão.
Parte disso se deve à homogeneidade das redações. O Perfil do Jornalista Brasileiro, mais completo levantamento das características dos profissionais em nosso país, registra que pretos e pardos estão sub-representados na categoria - 30%, contra 55% na população em geral.
A distorção ultrapassa a questão da representatividade para desaguar na própria construção da pauta e de seus enfoques. Salvo exceções, a cobertura jornalística ainda é predominantemente centrada nas regiões mais ricas de países, estados ou cidades - não surpreendentemente, o mesmo local de origem da maioria dos jornalistas. E o olhar sobre os "outros" - os não brancos, os que não estão no centro expandido das metrópoles ou moram longe do Sul-Sudeste - ainda é estereotipado: "população carente", "atingidos por tragédias", "dependentes de bolsas e auxílios". A lista é longa.
Uma coisa está ligada à outra: falar da periferia não "vende" (os valores-notícia dizem respeito sobretudo ao jornalismo comercial), mas como seria diferente se seus representantes estão ausentes do noticiário ou são retratados de forma caricatural e, não raro, preconceituosa?
Mudar essa lógica vai exigir esforços ativos para ampliar a diversidade nas redações, maiores do que os empreendidos até agora. Ainda que o lugar de fala muitas vezes seja utilizado para interditar o debate, não se deve perder de vista a renovação de temas e enquadramentos do noticiário que um reportariado mais diverso proporciona.
Ainda será preciso relativizar a ditadura do clique, que só entrega ao público aquilo que ele acha que gosta. Jornalismo tem compromisso com o interesse público, noticiário não é feito para ser divertido. O que a gente precisa saber para navegar na vida cotidiana às vezes é incômodo, difícil, chato. O modelo atual, aquele que só enxerga problemas depois de cinco anos para em seguida devolvê-los ao esquecimento, agoniza. O jornalismo míope para o Brasil real precisa rever seus agentes e seus valores.
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